Quem fala, além da escala: como foi feita a política até a democracia brasileira — por mulheres.

Tayara Causanilhas
Revista Marginália
7 min readMar 23, 2019
Bertha Lutz

Os direitos políticos são um conjunto de normas — no âmbito do direito (e, aqui, a ele me reservo) que dizem respeito à participação popular no processo político. Em linhas gerais, são direitos fundamentais que consagram a atuação do cidadão na vida pública de um país, equivalendo às prerrogativas e aos deveres da cidadania, compreendendo o direito de participar direta ou indiretamente do governo, da organização e do funcionamento do país.

O exercício desses direitos, entretanto, desenvolveu-se de forma não linear ao longo dos anos. Em 1789, com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, os direitos fundamentais começaram a tomar forma. Foi quando começaram a ser escritos os direitos políticos, que, à época, eram garantidos aos cidadãos.

Pois, o século XVIII fora marcado, também, pela luta feminina. Muitas foram destaque neste contexto; muitas foram guilhotinadas sem que sua voz perpetuasse no tempo. O que era escrito como “cidadão” não compreendia essas mulheres que, sobretudo, buscavam o exercício de seus direitos políticos de maneira igualitária. Assim a Declaração de Direitos do Homem, tal como a sociedade, marginalizava a participação feminina. O contexto da época era machista, assim como sua carta de garantia de direitos.

É perceptível, ao observar a história, que o sentido de cidadania não é suficiente às mulheres em qualquer época. Se, em 1789, Marie Gouze morreu guilhotinada pelo exercício de seus direitos políticos, vista como transgressora de regras e contrária aos bons costumes; o século XIX pode ser personificado por Virginia Woolf que, embora escritora, traduziu em seus livros e discursos a dificuldade de tronar-se cidadã de si. O século XX teve a expressividade de Frida Khalo, ativista política e artística, mais lembrada por seu envolvimento com Leon Trótski do que por sua atividade cidadã.

No século XXI, as mulheres continuam politicamente subjugadas. No Brasil, inúmeras mulheres têm seu exercício político calado diante da história dos homens. Homens, cidadãos: o gênero da ciência política mundial sempre fora muito bem definido. De que maneira ocorre o exercício igualitário da cidadania política?

A Constituição Federal de 1988 consagra os direitos políticos em seus artigos 14 a 16 que junto ao artigo 5º, II define uma pretensa igualdade política proveniente do documento. Mas, a análise do cotidiano da cidadã brasileira mostra esse como um espaço ocupado por lutas.

No Brasil, o exercício político feminino confundiu-se em duas esferas. A primeira delas, é o gênero de fato. Isto porque, tal como no mundo, os direitos políticos femininos foram garantidos por lei tardiamente, muito embora se tenha tido o governo de uma mulher ainda na monarquia. Além disso, a garantia de cidadania dada à isonomia não foi necessariamente consagrada na realidade fática. A segunda esfera envolve questões de classes sociais, na medida em que as mulheres foram distintamente participantes e ativistas da política na medida de suas classes sociais.

A família imperial, D. Pedro II e D. Leopoldina, sofreu a morte dos filhos, homens, que sucederiam o trono. A Constituição imperial outorgada por D. Pedro I permitia, entretanto, que, assim como em Portugal, as mulheres pudessem assumir o trono — ou assim ficou convencionado, em 10 de agosto de 1850, pelo reconhecimento do Congresso Nacional de D. Isabel como princesa imperial do Brasil, ou herdeira do trono. Entretanto, o exercício político de D. Isabel era completamente restrito ao seu papel de mulher na sociedade da época: “Como d. Pedro II exigiu, era necessário que a instrução das filhas não fosse ‘diferente da que se dá aos homens, combinada com a do outro sexo; mas de modo que não sofra a primeira.’”(grifos nossos).

Além da educação dual imposta pelo pai, ao casar-se, aos 18 anos, com o príncipe francês Luís Felipe Maria Gastão de Orleans, o conde D’Eu, desempenhou o papel socialmente imposto de mulher, prestando dever de obediência às imposições do marido. As duas influências masculinas apenas cessariam com o passar dos anos, na medida em que isso fosse possível para a mulher daquele século.

Contraposta a realidade da elite brasileira, estavam as mulheres do povo que, à sua maneira, lutavam por seus direitos e independência. Não eram, necessariamente, socialmente desprivilegiadas; eram, em seu conjunto, mulheres desprovidas de voz, participação efetivamente política.

A questão do gênero fica evidente na luta pela abolição da escravatura. Ainda que se diga que o posicionamento de D. Isabel ocorreu devido à pressão popular, sua imagem na causa abolicionista é de redentora. Todavia, outras centenas de mulheres lutaram pela mesma abolição, mas foram esquecidas na história.

O exercício do voto feminino no Brasil foi outro ponto expressivo na pauta feminina. Em janeiro de 1881, aprovou-se o decreto nº 3.029 ou Lei Saraiva que autorizava, em seu art. 2º, §10º que indivíduos com “diplomas científicos ou literários de qualquer faculdade, academias, escola ou instituição nacional ou estrangeira, legalmente reconhecidos” fossem eleitores. Ao deparar-se com o texto, Isabel de Sousa Mattos, dentista gaúcha, evocou a lei para requerer seu alistamento eleitoral, em 1885. A gaúcha teve seu alistamento eleitoral julgado improcedente na capital. Expressivo é que, já nesta Constituinte, diversas emendas para o exercício da cidadania por mulheres foram tentadas e todas foram rejeitadas.

Na mesma Constituinte, a baiana Isabel Dillon, por sua vez, tentou candidatar-se deputada alegando o Decreto nº 511 de junho de 1890, que não excluía as mulheres do processo, dispondo como requisitos a maioridade e a capacidade de ler e escrever. Assim também foi para Leolinda de Figueiredo Daltro que, no mesmo ano, não conseguiu seu alistamento eleitoral.

Da junção dessas e de outras mulheres, algumas ditas feministas, criou-se o Partido Republicano Feminino, em 1910, no Rio de Janeiro. O brilhantismo é creditado à Gilka Machado, que observou a nova lei de criação dos partidos políticos e conseguiu registrar o PRF. Seu estatuto solidificava a luta por direitos políticos e sociais tais como os usufruídos por homens. A luta visava a emancipação da mulher brasileira, estendida às disposições constitucionais videntes e incorporadas à sociedade brasileira[10]. Contudo, embora o partido existisse, não poderiam lançar uma candidata — à época, a mulher não podia exercer direito de elegibilidade ou direito de voto[11].

Por mais dez anos, o PRF exercia a política feminina fora dos âmbitos de eleição, ocupando de diversas maneiras os espaços de manifestação com a permanente crítica à cidadania incompleta das mulheres. Diante desse projeto, fora criado, em 1922, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). Uma participante, Bertha Maria Júlia Lutz, tornou-se expressiva no campo político da época. Tal como o PRF, suas campanhas aconteciam em diversas frentes e na Câmara Federal.

Assim, o direito de voto feminino foi tardio no Brasil: apenas no dia 24 de fevereiro de 1932 esse direito foi garantido por um decreto de Getúlio Vargas[13], o decreto nº 21.076 de 1932, que estipulava, no artigo 2º, que seria “eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código” e, no artigo 59, que seria candidato aquele que fosse eleitor. Entretanto, a conquista não foi total, de pronto: apenas as mulheres casadas, com autorização de seus maridos, viúvas ou solteiras que comprovassem renda própria poderiam exercer sua cidadania. Apenas em 1946 a obrigatoriedade do voto fora estendida à todas as mulheres.

A Era Vargas foi marcante para o exercício político feminino. Em 1933, duas mulheres participaram da Assembleia Nacional Constituinte, dentre os 254 representantes: Carlota Pereira de Queirós e Almerinda Farias Gama. A primeira, díspar da FBPF, tinha na aristocracia política paulista o apoio que a levou ao cargo. A segunda, negra e sindicalista, vinculava-se ao movimento feminista.

Em 1934, foram eleitas nove mulheres para as Assembleias Legislativas estaduais: Antonieta de Barros, em Santa Catarina, Quintina Ribeiro, no Sergipe, Lili Lages, em Alagoas, Maria do Céu Fernandes, no Rio Grande do Norte, Maria Luísa Bitercourt, na Bahia, Maria Teresa Nogueira e Maria Teres Camargo, em São Paulo, Rosa Castro e Zuleide Bogéa, no Maranhão. Além delas, Bertha Lutz entrou para a Câmara em 1936.

Diante dos direitos consagrados até o ano de 1988 no Brasil, não é incorreto afirmar que avanços ocorreram, ainda que mínimos. A retomada democrática da Assembleia Constituinte de 1987–88 promoveu a expressividade do exercício político da mulher no plano nacional e, por isso, o presente capítulo será dedicado às conquistas desse momento que perduram até hoje.

O movimento de mulheres ampliou consideravelmente seu protagonismo no final dos anos 1970. No ano de 1985, para além do prenuncio da Constituinte, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) fora criado, consagrado pela busca por direitos básicos das mulheres e no fortalecimento da democracia participativa.

Note-se que, à época, os direitos da mulher eram feitos de qualquer maneira nas constituições brasileiras. No tocante, por exemplo, do princípio da igualdade é possível observar que, até 1934, as Constituições limitavam-se a afirmá-lo de maneira genérica, isto é, todos são iguais perante a lei. Em 1934, pela primeira vez, há a preocupação jurídica com a mulher, como consta na previsão contra privilégios e distinções por motivos de sexo. A Constituição de 1937, entretanto, suprime qualquer referência expressa à igualdade jurídica entre os sexos, retornando à formula genérica — reproduzida no texto de 1946. A partir de 1967, fixou-se expressamente o preceito que garante igualdade de todos sem distinção de sexo, sem, porém, harmonizar a completude do ordenamento jurídico que, à época, tinha traços expressivos de misoginia.

Pois, o resultado das 26 eleitas fora delineado desde a anistia, em dezembro de 1978, quando as brasileiras exiladas trouxeram consigo as experiências dos movimentos feministas de outros lugares do mundo.

É isso que comemoramos: 26 eleitas, diante de mais de 500 pessoas para elaborar nossa Constituição Federal. A conhecida bancada feminina fez-se notar, mas não é possível mascarar os números — mas essa, é matéria de outro texto.

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Tayara Causanilhas
Revista Marginália

o caos acometeu e eu não deveria ficar acordada. aprende a viver agora, Tayara.