Um Corpo para uma Vida, uma Vida para um Corpo

Danilo Araujo
Revista Marginália
12 min readAug 16, 2019

Divagações por uma metapoética da criação

Francis Bacon — The Loss of Self

A existência inteira, para um homem que se desviou do eterno, é tão somente um mimo desmesurado sob a máscara do absurdo. E esse grande mimo é a criação. O Mito de Sísifo, Albert Camus

Eu inicio esse texto trazendo uma reflexão sobre o corpo. Além de sua forma orgânica, o que pode ser um corpo?

Por um corpo vislumbra-se o impulso por criação. Impulso vital, potência, pulsão, vontade. O movimento pela ação.

O corpo é o lugar onde iniciamos uma vida. Ou melhor: Um corpo é uma vida, e o que busco é reivindicar o seu lugar. Lugar para a experimentação.

Experimentação pela criação, a arte, especificamente.

Não é algo novo, tendo em vista uma tradição de filósofos e artistas que procuraram romper com as barreiras normalizadoras da vida para construir novos espaços de imanência em meio ao espírito do tempo no qual nos encontrávamos, vivendo nos séculos de decadência da modernidade.

Todos muito conectados com a criação e a arte, essa linha de filósofos da transgressão individual não proclamavam uma continuidade da razão e seus conceitos na filosofia, pelo contrário. Resgatavam a linha do irracionalismo moderno, sob uma perspectiva renovada.

Essa linha de filósofos iniciada oficialmente com Nietzsche, fala da desconexão dos sentidos no mundo, da não linearidade dos fatos e acontecimentos históricos, a impossibilidade de construir um mundo objetivo coerente com as relações intersubjetivas, sendo a própria razão e a ciência irracionais.

O marco dessa tradição revolucionária contra o poder sobre os corpos foi a revolução estudantil de 1968 na França, desencadeadora de uma série de protestos em outros países, como Estados Unidos por exemplo. Essa revolução foi uma reivindicação pela libertação dos valores morais presentes no mundo ocidental. Os jovens estavam cansados das guerras, das verdades científicas, do ‘’progresso’’ neoliberal, das crises políticas, etc. Foi uma revolução caracteristicamente cultural, que clamava por uma individualidade transgressora, liberta das institucionalizações do comportamento. Assim, deu-se espaço às revoluções sexuais, a onda hippie nos Estados Unidos, à hiper individualidade.

Politicamente falando, eu não vou negar o caráter inteiramente liberal dessas pequenas revoluções, no sentido de responder ao conservadorismo com o progressismo de esquerda e a transgressão cultural presente nas novas correntes filosóficas do pós estruturalismo com Michel Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guattari, etc. Foram revoluções inteiramente estéticas, marcando um momento de mudança fundamental dentro do novo panorama da pós modernidade.

Apesar disso, eu consegui enxergar nessas correntes filosóficas a ideia de revolução do corpo com a profundidade que seus proponentes exigiam.

Talvez, Gilles Deleuze tenha sido um dos maiores expoentes da desconstrução moral e institucional do sujeito, juntamente a Felix Guatarri. Ele falava sobre a necessidade de nos transformarmos em máquinas de guerra, formadas por singularidades criativas do ser. Era notável na linguagem desses filósofos uma certa idiossincrasia à própria semântica.

Deleuze falava sobre o corpo. O corpo movido pelo desejo. Desejo como força para fazer sentir e agir, vindo da intuição como auto afeto para que possamos chegar em um momento no qual nos auto determinamos.

Ao contrário das ideias de transcendência em vida para evitar os dualismos morais como bem e mal por exemplo, Deleuze falava sobre o plano de imanência como oposição. O plano de imanência é o aqui e o agora, é o plano por onde passam as intensidades sobre um corpo tanto físico quanto de pensamento.

Ele desenvolveu o conceito de Corpo sem Órgãos para explicitar esses corpos de pensamento movidos pelas intensidades que os transpassam. Seria o mesmo que uma singularidade como passagem para o novo nascimento, a auto transformação. Voltar-se para si e depois para fora de si, o eu enquanto sujeito e objeto. O externo seria apenas a composição de um conjunto de corpos, e as reações que eles nos provocam enquanto afeto.

Para ilustrar melhor essas ideias, me lembro de ter ouvido de um professor que a arte pode ser medicina ou veneno, pois os artistas são como clínicos da cultura em meio ao delírio universal.

Para Deleuze, tudo era um grande delírio, mas, eis aqui o papel da arte.

Esse conceito de corpo sem órgãos foi construído a partir de uma forte influência artística na vida do filósofo: O papel do dramaturgo, poeta e diretor de teatro Antonin Artaud vivendo esse grande delírio.

Antonin Artaud já dizia: nós nunca nascemos senão possessos.

Artaud precisou morrer em vida por incontáveis vezes até chegar ao esgotamento do corpo e da consciência para nos deixar o legado de sua transgressão como indivíduo. As limitações do corpo em vida dentro dessa condição possessa rasgavam-no por dentro ao tentar buscar uma animalidade da potência humana, fazendo-o declarar guerra aos órgãos, simbolicamente.

Foi o homem que viveu com intensidade a doença do espírito.

Para Artaud, o teatro era o palco da liberdade e da experimentação. Era onde explanava todos os seres possíveis dentro de si. No auge de sua doença mental, trocava cartas com Jacques Riviere um grande escritor que na época, era editor da revista Nouvelle Revue Française (NRF).

Uma vez lhe escreveu:

‘’Quem não conhece a depressão, quem nunca sentiu sua alma levada pelo corpo, invadida por sua fraqueza, é incapaz de perceber alguma verdade no homem; é preciso não poder mais mexer, ter esperança ou crença para constatar. Como distinguiremos nossos mecanismos intelectuais ou morais se deles não nos privarmos temporariamente? Essa é única consolação para aqueles que experimentam a morte em seus pequenos golpes: eles são os únicos que sabem um pouco como a vida é feita.’’

Para emitir a voz da animalidade que estava presa em seu corpo, decidiu fazer uma transmissão radiofônica com um grupo de artistas.

A transmissão chamava-se ‘’Para acabar com o julgamento de Deus’’.

Seguem alguns trechos interessantes:

‘’para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver
é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um OSSO,
é preciso não ter medo de mostrar o osso
e arriscar-se a perder a carne
homem sempre preferiu a carne
à terra dos ossos’’

[…]

‘’dilatar o corpo da minha noite interior,
do nada interior
do meu eu
que é noite,
nada,
irreflexão,
mas que é explosiva afirmação
de que há
alguma coisa
para dar lugar:
meu corpo’’

[…]

‘’Quem sou eu?
Sou Antonin Artaud
e basta eu dizê-lo
como só eu o sei dizer
e imediatamente
verão meu corpo atual
voar em pedaços
e se juntar sob dez mil aspectos
notórios
um novo corpo
no qual nunca mais
poderão
me esquecer. ’’

Antonin Artaud

Em alguns trechos de ‘’O Homem-Árvore’’, Artaud grita:

‘’ Animais sem vontade nem pensamento próprio,
ou seja, sem dor própria,
que em si não aceitam vontade de uma dor própria
e para forma de viver mais não encontraram que falsificar a humanidade.
E da árvore-corpo, mas vontade pura que éramos,
fizeram este alambique de merda,
esta barrica de destilação fecal,
causa de peste e de todas as doenças
e deste lado de híbrida fraqueza,
de tara congênita, que caracteriza o homem nato.

Um dia o homem era virulento,
só era nervos elétricos,
chamas de um fósforo perpetuamente aceso,
mas isto passou à fábula porque os animais lá nasceram,
os animais, essas deficiências de um magnetismo inato,
essa cova de oco entre dois foles de força
que não eram, eram nada e passaram a ser qualquer coisa,
e a vida mágica do homem caiu,
caiu do seu rochedo com ímã
e a inspiração que era o fundo
passou a ser o acaso, o acidente, a raridade, a excelência…’’

Agora, caminhando em direção oposta à das máquinas de guerra e da animalidade, falemos a respeito de uma filosofia da indiferença. Indiferença ao mundo. Poderia, uma indiferença ao mundo servir de alicerce à potência do espírito? E o que seria o espírito?

Camus: O Espírito e a Criação

Eu procuro não me ater a pequenas romantizações a respeito de minhas indagações sobre criação, ou mesmo a ideia de espírito, para assim poder alcançar linhas de concretude. Entretanto, a criação é romântica por si só.

Ela indica a proeminência voluptuosa dos sentidos e afetos, envolvendo uma multiplicidade de emoções quando sintonizada com a paixão de construir, mover, realocar o mundo em vida. No campo da arte, é uma paixão pueril que permeia todas as camadas da abstração humana em conluio com a introspecção.

Livre de concepções ligadas a uma metafísica religiosa, o que compreendo pela ideia de espírito é uma infinitude de universos que interagem entre si, descolados de qualquer tipo de constância objetiva a que se tente fazer paralelo. Assim, nos encontramos diante desse resplandecer da própria vontade ao viver e reviver esses universos por meio de ciclos introspectivos.

E a arte nos conduz a elevação do espírito como composição máxima de um corpo.

Em ‘’O Mito de Sísifo’’, o filósofo Albert Camus fala sobre essa condição humana que é completamente indigna, a condição das grandes agitações.
Ela nos leva ao abismo da angústia em meio ao mundo dilacerado pelo choque das civilizações. O que era o delírio para Deleuze, era o absurdo para Camus:

‘’o coração aprende que essa emoção que nos arrebata diante dos rostos do mundo não nos vem de sua própria profundeza, mas de sua diversidade. A explicação é inútil, mas a sensação permanece e, com ela, os apelos incessantes de um universo inesgotável em quantidade.’’

De acordo com ele, chega uma hora em que é necessário escolher entre a contemplação e ação, sendo a ação como escolha necessária para uma vida desprendida de concepções de eterno ou de tempo.

‘’O indivíduo não pode nada e, no entanto, pode tudo.’’

A lucidez sustenta a força e a virilidade. Quanto ao ser, entendo por Camus que:

Ele precisa da lucidez para enxergar as coisas com clareza, se reencontrar com o silêncio e abraçar a grandeza.

Partindo dessas premissas, Camus abre espaço para falar sobre a criação, a obra de arte. A obra seria a única possibilidade de se manter a consciência para que o ser possa fixar-se em suas aventuras. Seu lugar marca a morte de uma experiência e sua multiplicação, simultaneamente. São elevados os corpos, as formas ou as cores, o número ou o desgosto. Para Camus, criar é viver duas vezes. Cita Nietzsche para exemplificar:

‘’A arte e nada além da arte. Temos a arte para não sermos mortos pela verdade.’’

Em suas ideias direcionadas a obra de arte, ainda diz que ela não nos oferece uma cura para a doença do espírito, muito pelo contrário. Ela é exatamente um dos signos dessa doença, que a faz repercutir em todo o pensamento de um homem.

Sobretudo, por escolhas: Camus falava da escolha pela arte como forma de induzir o espírito a sair de si mesmo através da claridade que a lucidez pode proporcionar, convencido da aparência sensível das coisas.
Assim, ela é elevada a um alto nível de criação, acompanhada da indiferença e descoberta, a arte por si só.

A arte justifica a escolha pelo irracional e a tudo que se relacione com o que é próprio da aparência sensível, das experiências, encontros, acontecimentos, olhares intuitivos, etc.

Camus, em toda sua sobriedade, diz:

‘’Ela fixa o ponto de onde as paixões absurdas se atiram, e em que o raciocínio pára. O artista, pela mesma razão que o pensador, se transforma na sua obra.

Não há nada mais inútil do que essas distinções segundo os métodos e os objetos para quem se persuade da unidade de propósito do espírito. Não há fronteiras entre as disciplinas que o homem se apresenta para compreender e amar. Elas se interpenetram e a mesma angústia as confunde.

Esse jogo do espírito consigo mesmo segundo leis estipuladas e medidas se desenrola no espaço sonoro que é o nosso e além do qual as vibrações, no entanto, se reencontram num universo inumano. Sensação pura.’’

Para Camus, a obra de arte nasce da renúncia da inteligência a raciocinar sobre o concreto. Isso remete a um dos fundamentos essenciais da filosofia irracionalista: a negação da razão! A clareza da qual tanto se fala é o motor do pensamento lúcido. Mas, no ato dessa renúncia da razão, a inteligência objetiva se desprende. É o que a obra de arte encarna: o apoio do pensamento abstrato na carne, o triunfo do carnal como novo drama da inteligência.

A reflexão segue ao lado da experimentação, explodindo em sucessivas imagens, fortalecendo-se. A criação é o que dá forma ao destino.

‘’ a vontade humana não tinha outro fim que o de sustentar a consciência. De todas as escolas da paciência e da lucidez, a criação é a mais eficiente. A revolta obstinada contra a sua condição, a perseverança em um esforço tido como estéril. A grande criação é resultante dessa revolta, e também é sua testemunha. […]

[…]Esse triunfo todo carnal lhes foi preparado por um pensamento em que os poderes abstratos foram humilhados. Quando estes o são inteiramente, a carne no mesmo instante faz brilhar a criação em todo o seu esplendor absurdo.’’

Esse último trecho de Camus em ‘’O Mito de Sísifo’’, me faz lembrar do conceito de psicomagia do cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, onde ele procura trazer a arte para o campo da transcendência humana.

O pintor William Turner procurou representar o horror da escravidão no século XIX ao pintar sua obra ‘’O Navio negreiro’’, como uma maneira de denunciar as barbaridades do mercado de escravos. Essa é a expressão do absurdo da qual Camus falava:

O Navio negreiro, William Turner (1840)

‘’Todo pensamento que renuncia à unidade exalta a diversidade, que é o lugar da arte. O único pensamento que liberta o espírito é aquele que o deixa só, certo de seus limites e de seu fim próximo.’’

Acredito que, a ideia do irracional seja uma abstração por si só. Ela representa uma quebra de correntes.

Essa noção de quebrar correntes faz-me recordar do filme ‘’Teorema’’ de Pier Paolo Pasolini, uma obra autêntica, clara em sua proposta. Na verdade, acho que vai além de uma proposta, é um chamado para o recrudescimento do desejo humano pela erosão.

Cena do filme Teorema (1968)

Uma espécie de messias ou mesmo um agente do caos, chega na casa de uma família burguesa onde predominam todos os valores morais sobre comportamento e religião.

A presença desse messias abala todas as estruturas morais da família, levando-as a um estado de máxima vulnerabilidade, ao ponto de morrerem por dentro para a fecundação de novos corpos, novas identidades.

O pai, dono de fábrica, visto como o alicerce e provedor da família, é o último a fazer ressoar a carne com o espírito, dando seus últimos suspiros como uma identidade fixa para um novo ‘’eu’’. Seu caminhar no deserto simboliza a passagem para a transformação, dura e penosa. É a libertação do homem à ordem burguesa da vida.

Prelúdio

Apesar de seguirem uma linha diferente de pensamento, esses filósofos e artistas estavam sempre trilhando um caminho: o caminho da criação.

Eu poderia citar uma série de outros exemplos que seguem essa tradição por uma filosofia incorporal pelos corpos através da arte, mas já me estendi demais por aqui. Pretendo fazer desse texto um prelúdio para novas reflexões acerca da criação, portanto, vou continuar escrevendo.

Fica cada vez mais claro que precisamos de nossas rupturas objetivas para dar a verdadeira voz à criação, o que é o maior desafio. O corpo estará sempre preso. No processo de evolução ele sentirá uma necessidade cada vez maior de se libertar. Essa é a voz do espírito do qual falei mais acima. E não acredito que exista um limite, a não ser, a morte.

Consegui trazer alguns elementos que compõem a base do pensamento criador. Assim, penso em algo para a emancipação.

Mas, ainda não consigo responder a pergunta fundamental: o que seria essa emancipação? Eu apenas consegui traze-la a uma zona de fundamentação, onde os elementos se comunicam e se completam. Porém, não há uma translucidação que me permita colocá-la em palavras.

Talvez, seja disso de que se trate a filosofia:

Da experimentação.

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