A história perfeita
Desci do ônibus e entrei na lanchonete. Imediatamente sentei no banco em frente ao balcão. A garçonete me recebeu com um sorriso largo. Seus cabelos loiros curtos emolduravam o rosto branco, de quem não via o sol em sua plenitude há muito tempo. Nenhum de nós o via com a neve nublando a vida do lado de fora.
Olhei para as minhas mãos e pensei se também estavam pálidas. Tudo parecia pálido. Até mesmo as cores da pequena lanchonete eram desbotadas. O vermelho do sofá estava morto. Se fosse para forçar dizendo que havia algo com alguma vida ali seria o café, pela quentura que senti em minha mão assim que a garçonete o serviu junto a um pedaço de torta de framboesa.
Dei uma garfada antes de me empertigar na cadeira e abrir o sobretudo em busca de meu caderno. Estava na hora de pôr algumas palavras no papel. Já fazia mais de 6 meses desde que eu conseguira concluir uma história. Não consigo mais, parece que as palavras me fogem.
Olhei ao redor, observei duas mulheres rindo para a garçonete que tirava o bloco de notas do bolso para atender o pedido. Eu nem havia visto quando ela se afastou, já fazia algum tempo? Balancei a cabeça. Precisava focar na escrita.
Minha caneta pendia em cima do papel. Eu tenho de conseguir, tenho de fazer algo bom, algo que signifique alguma coisa para alguém, ou no mínimo para mim. Bato a ponta da caneta no papel, escrevo uma palavra, a risco, faço uma espiral no papel, um movimento aleatório.
Não iria acontecer, uma frase sequer iria sair de minha cabeça.
Era o fim. Como não tinha percebido antes? Se acreditasse em Deus, um mínimo que fosse, estaria pedindo por um milagre agora, mas Deus nunca existiu. Coloco dois dedos em minha testa e a massageio. Se as palavras morreram para mim, o que me sobraria no mundo?
Talvez eu devesse virar um garçom, me juntar a loira sorridente e me resignar ao anonimato, a falta de talento para as únicas que já amei. Olho para a garçonete pensando se ela poderia me dar alguma dica de como começar naquele meio.
Ela está tentando disfarçar que me vê, mantém aquele sorrisinho escondido, provavelmente querendo flertar comigo. Ah como esse sorriso me irrita, essa garçonete, esse sorriso, o avental, tudo nela me irrita. E como não me irritar? É um agouro para minha alma.
E esse sorrisinho… argh.
Coloco a caneta no papel. Se elas não vinham a mim não importava mais, agora só o que seria é o sorriso infeliz e a torta amarga, agora descritas para apaziguar a minha alma.
Então escrevo, escrevo para colocar aquele sorriso para fora de mim e o avental para longe. Descrevo em cores, em brilhos , em formatos. Me irrito, meu estômago se retorce.
A maldita ainda me encara.
Ela agora estava no balcão e se apoiava nele. Sorria ainda mais. Se eu pudesse, colocaria uma sacola em sua cabeça para cobrir aquele sorriso, talvez um pano?
Sorrio de volta.
E escrevo, escrevo sobre aquilo, escrevo sobre o maldito sorriso, sobre o destino contido em cada um dos terríveis dentes brancos. E então os distorço, transformo os dentes em ruínas, repletos de caries, cobertos por desespero. Era o que aquilo realmente deveria ser, era o que se escondia no toque da mandíbula dela.
Não sei por quanto tempo escrevo o que provavelmente seria o pior texto de minha vida, mas ainda assim o único jeito.
Quando finalmente abaixo a caneta estou exaurido. Ainda há alma em mim? A garçonete sumiu. Há quanto tempo teria ido? O sorriso ainda estava ali, cravado no papel.
Começo a ler o que escrevi, já esperando o quão ruim aquele desespero deveria ser. Mas… não. Não é possível! Como pode? Minha boca se abre, suo, mesmo que o frio seja mais forte. Eu estava mesmo lendo aquilo? Eu tinha mesmo feito aquilo?
Oh bom Deus, obrigada, amém.
Era isso. A partir de agora não há mais sobre o que escrever. Naquele momento, naquele sorriso, minha jornada como escritor tinha chegado ao fim. E eu antes achando que estava acabado… que engano! É, o fim.
Me sinto um cadáver.
Se agora não sou mais escritor, não sou nada e por isso preciso nascer novamente, este ser se foi. Obrigado Deus por finalmente ter a morte que deveria.
Mas… e agora?
Talvez a solução seja então entrar naquele ônibus novamente, continuar a estrada e, quem sabe, encontrar outro autor, ainda não concebido para substituir o falecido. Morto no sorriso da atendente.
Mas, sabe, foram as melhores linhas para um belo epitáfio.