Silvana Leal

A camiseta

Suélen Dominguês
Maria do Ingá
Published in
2 min readAug 14, 2020

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Ela não se mexe, engolida pelas rugas, definha num canto do quarto. Quase juro um suspiro, não vem. Os buracos definem bem seu sofrimento, cada dia que passou e os últimos dias de ser trapo. Segue estagnada.

Foi mal de linha, compreende. De tomar muito sol nas costas. Hoje pensa mais ou menos, Tanto faz o mundo e a morte, não passo duma gastura que o tempo comeu. Arrasto o fio sem remorso grudado no calcanhar e a noite chega para nunca mais ser dia.

Não botei reparo no exato do arrebento. Pode ter sido ontem, ou hoje, ou agora. De muito uso, de tanto ser útil, a costura não aguenta mesmo. Ficou doente. Sem sonho de água, com enjoo de amaciante. Dessa dor tão humana, a cada lavada, outro pedaço despedaço.

No fundo, ela só queria caber. Esticava, dava um jeitinho daqui, dali, ajeitada. Os ombros foram os primeiros. Depois, comecei a mastigar a borda do colarinho. A puxar com as unhas o acabamento. Por que fiz o que fiz? Eu costumava gostar dela.

E bem que arrependi. Prometi ser boa, paciente, gentil. Mas da mesma cor vermelha, não encontrei carretel que batesse. O remendo piorou o defeito. Doía até de olhar. Desalinhavou-se, encurtando.

Nunca me senti dona. E também nunca pedi muito, nada além de conforto. Daí que, por piedade, ela se contorcia no nó e aguentava mais um tico. Que houvesse uma agulha poderosa para solucionar o rasgão. Como dizer? Você é vítima do estragado, costura aqui, arrebenta do outro lado. Está podre.

A desgramada soube o meu pensamento. Não espera o ponto de socorro. Despida. O vermelho escorre. Se bastasse o meu amor mediano, pela última vez, Coragem. O amor não é o bastante. Está fria e indecente. A gata é que ainda gosta, deita, rola, faz o que quer. Se pode levar saudade, enche-se de ronronado, pelos e parte.

Gostaria de inventar uma verdade e dizer que ela melhorou. Que o alinhavo se refez. Mas sabíamos que o seu miúdo não suportaria outro corpo, outro dia, outro uso. Ela não existe além das linhas. Resolveu? Não sei. Eu não queria uma tragédia.

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Suélen Dominguês
Maria do Ingá

Contra a violência do mundo, a violência da palavra.