A ponte

Marília Duka
Maria do Ingá
Published in
4 min readAug 14, 2020

Vista pela calçada, a ponte não parecia tão alta. É curioso como as percepções se modificam quando mudamos nossa perspectiva. Por exemplo, o meu desespero pode não parecer tão perturbador quando visto pela lente de terceiros. Mas em face de tantas batalhas travadas e perdidas, meu sofrimento tem a necessidade de reclamar seus direitos. Precisava somente de um único passo para subir. Como não bastasse ter reconhecido a bestialidade da minha própria vida, tenho, agora, que aceitar a verdade guardada no clichê da “importância do primeiro passo”. Nem mesmo no meu fim me poupam das ironias involuntárias do cotidiano.

O tempo também passa diferente quando refazemos todos nossos anos nesses poucos segundos que antecedem a queda. Uma gama infinita de possibilidades, de decisões que poderiam ter sido tomadas, de caminhos que não deveriam ter sido traçados. Tudo poderia ter sido diferente, exceto pelo fato de que não foi. E eu sabia disso. Sempre soube disso. E foi nessa fatídica subida que eu percebi algo novo: saber, apenas, não era, não foi e nunca será suficiente. Era preciso algo mais. Eu, contudo, não tenho mais tempo para descobrir o que é esse algo a mais. Sim… O tempo passa diferente para aqueles que estão compreendidos entre o segundo exilado em completo marasmo e o segundo destinado ao abismo.

Por um momento, deixei que a brisa me invadisse o corpo e pensei que tudo o que fiz me levara a isso e nada mudaria o fato de que meu destino fora determinado no meu nascimento. Vejo as teorias deterministas como uma ótima solução para se isentar das próprias responsabilidades. O determinismo, porém, nunca me convenceu. Nunca me confortou a ideia de acreditar em um Ser inteligível que tenha criado o mundo, nos dado a vida e, no seu ato de generosidade e bondade infinitas, deu-nos o livre-arbítrio para que pudéssemos agir independentemente do criador, mas sempre conforme as Suas leis. Qual é, afinal, o sentido disso?

Não, mesmo ali, de braços abertos e entregues ao devir, era preciso que eu confrontasse as Suas leis e reafirmasse as minhas. Os motivos para que eu não acreditasse na liberdade eram outros e, ainda que estivesse a um passo da desintegração, eu precisava deixar claro que minhas decisões eram minhas e então gritei. A essa altura, eu já deveria saber que esse grito era como tentar pegar fumaça com as mãos, completamente inútil. Mas a questão não era essa, eu não brigava com Deus por revolta, na verdade isso sempre me foi indiferente. Existir ou não, ser bom ou não, nunca me importei com isso. É que era mais fácil apontar a inconsistência dessa imagem suprassensível do que da minha própria.

Abaixei os braços e sorri ironicamente, assumindo a existência desse outro eu, tão latente, tão colérico e, ainda assim, tão necessário. Aceitar esse lado me custou mais do que eu poderia dar, reconhecer que tenho esse furor insaciável e libertar o ser atroz foi o meu fim. Mas é possível olhar os eventos por outro ponto de vista, o do monstro. Talvez fosse o fim para ele se não saísse do meu claustro. Guerreamos bravamente e de forma honesta. Não convém trata-lo por vilão. Se nós reconhecemos como um feito heroico aquele que luta pela própria vida, por que seria diferente com ele? Disso, ao menos, minha consciência está tranquila e minhas mãos estão limpas. E nessa luta pela sobrevivência, eu perdi. Por isso estou aqui. Por isso subi nessa ponte.

Eu não desisti. Lutei até o último momento, mas meu exército se retirou e me abandonou. Guerrear só, contra todos os meus medos e pensamentos mais sórdidos, liderados pela verdadeira ira personificada, é aceitar a missão suicida. Mas diferente das minhas tropas, eu não podia fugir do meu próprio corpo, então fiquei. Lutei. E perdi. Como prêmio, ele ganhou o domínio do meu corpo, mas não deixei que levasse, como mero espólio, minha consciência. Embora em diversas ocasiões eu tenha me arrependido e preferido que tivesse me levado tudo, para me poupar da inação diante do meu sofrimento.

Avancei uma das pernas, que ficou suspensa, sem ter onde se firmar. Aquela sensação de desamparo eu conhecia bem. Foi quando meu corpo titubeou. Como se minha perna contrariasse o meu comando e, receosa, se recolhesse na superfície. Eu insisti e repeti o ato, que foi repelido mais bruscamente. E então eu entendi: o monstro estava com medo. Embora tivesse dominado meu corpo, não detinha, em si, força suficiente para controlar a minha vontade de autodestruição. A minha decisão era irrevogável, pois sem ajuda era impossível vencê-lo. Ele travou meus movimentos, deixando meu corpo imóvel. E eu fiquei ali. Alguém eventualmente teria que ceder.

Agora era tudo tão óbvio. Nós estávamos ligados por algo maior do que qualquer ciência. O que nos unia não era a luta pela sobrevivência de cada um, não era a contradição presente em cada um de nós, tampouco era a inevitável relação, ungida em gemidos de dor, que tínhamos, mas era apenas a vida nela mesma. A existência em seu nível mais básico e elementar. E, ao contrário do que eu pensava, não era na morte que aconteceria nossa separação, pois morreríamos juntos. Os únicos capazes de nos separar eram nossos aliados, aqueles que eu, na avidez de ganhar, havia perdido por ter me isolado no mais bronco solipsismo. Não tive esperança de que algo pudesse mudar, pois o que há pouco eu percebera, comprovou-se mais uma vez, saber, somente, não bastava. E eu, este ser resignado, aceitei que passaria o resto dos dias nesse verdadeiro castigo de Sísifo de subir e descer da ponte.

Até que você apareceu, com os olhos inflados, mas esperançosos, esticou a mão e me disse “vem”.

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