A refeição

Nathália Kretschmer
Maria do Ingá
Published in
3 min readAug 17, 2020
N.K

Caminhava incessantemente. Incessantemente ela caminhava.

Os carros passavam,

ela passeava e

observava.

Chegando em casa, sozinha, Cícera perguntava a si mesma a descendência dos seus traços. A urgência dos olhos que nunca viram.

Cícera era menina crescida, dessas que acordam antes dos 15 anos, mas que, no fundo, nunca conseguiram dormir. Em seu quarto, sua companhia era o medo, o deboche, a descrença, a insegurança. Ela era cautelosa no assunto e quando alguém falava sobre, desconversava, mas não falar do assunto não quer dizer que ele não existisse, ela pensava. O tempo quando visto de longe é a potência da angústia.

À procura de uma resposta, Cícera montava os fatos. Separou as fotos, uma por uma; abriu os álbuns da família e não se via naqueles cabelos loiros ou naqueles olhos claros, ou nas expressões, nos gostos. Em cada olhada no espelho, uma lista de perguntas:

- De onde vieram a cor dos meus cabelos?

- De onde vieram a cor dos meus olhos?

- A fartura de sobrancelhas, de onde veio?

- E a mancha na perna?

- O tamanho do meu nariz?

Durante as indagações, Cícera tropeçou em um acontecimento: como cão farejador, lembrou-se do dia que passou por um homem de mais ou menos 45 anos e seu perfume despertou uma lembrança há muito adormecida.

- Eu tinha 10 anos e…

Inquieta, sempre inquieta.

- Lembro de uma blusa listrada que ele vestia com os dois últimos botões abertos.

Mas a mãe de Cícera abriu a porta do quarto e disse: “Vem comer”

A hora do almoço era a mais perigosa. A pergunta era o banquete principal. Um olhar para cima e dois para o vazio do lugar. Mastigava a comida sem apreço. A respiração era profunda e o pé balançando de forma inquieta a entregava.

Naquele mesmo dia, depois da refeição, uma amiga, Ana, convidou Cícera para ir até a sua casa. Ela foi. E em uma situação íntima, Ana, que também balançava o pé inquieto, disse:

- Cícera, meu pai traiu minha mãe. Já aconteceu isso com você? Não sei como é na sua casa, mas aqui é assim. Todos ditam e mascaram a verdade.

O silêncio prevaleceu.

Ana não disse nada. Cícera menos ainda. E foi assim, de maneira absorta, que Cícera inventou que tinha um compromisso e foi embora. Na volta para casa, em voz baixa, repetia: “era uma menina, uma menina com a mesma idade que eu. Ela tinha os pés tão inquietos quanto os meus na hora de falar. Era uma menina, uma menina com a mesma idade que eu”.

Deslocada, chegou na cozinha da sua casa, pegou um copo de água e debruçou-se sobre a cama. Pensava na amiga e sua afeição aumentava toda vez que ela repetia o que a outra havida dito: “Não sei como é na sua casa, mas aqui é assim. Todos ditam e mascaram a verdade.”

Cícera idealizava tão bem as histórias alheias.

Na manhã do dia seguinte, Cícera sussurrava em frente ao espelho:

- Ana tinha os pés tão inquietos quanto os meus na hora de falar.

Sua mãe abriu a porta do quarto e disse: “Vem almoçar, filha. É hora do almoço”.

(Cícera continuou parada em frente ao espelho com as duas mãos na cabeça).

A mãe repetiu: “A refeição está na mesa”.

(Se vendo no reflexo sussurrou).

- Eu lembrei. Eu tinha 10 anos e o cheiro era de cravo! - E a mãe respondeu: “É hora do almoço”.

- Estou indo.

Olhou em volta, viu as caixas cheias de escritos e os desenhos que fizera durante os anos à procura de uma imagem. Fitou novamente o espelho onde sempre procurava em si um traço alheio.

Vieram o irmão, os tios, os avós, as primas, os dias, os anos. O peito dela enchera. De idade vencida, Cícera saiu do quarto e chamou todos para a mesa e dessa vez não sobrou lugar. Ela saiu do seu estado de vertigem. A comida havia esfriado. A vela da passividade apagou.

Sem medo de engolir o retorno ou coisa parecida, a pergunta veio:

- Quem é meu pai?

E sua mãe não conseguiu responder

é hora do almoço.

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