A vida como a conhecíamos

Bruno Vicentini
Maria do Ingá
Published in
5 min readSep 8, 2020
Imagem: Manfred Richter

Por aqui parava o cronópio, pois para sair à rua precisava da chave da porta.

Começou numa quarta-feira que tinha tudo para ser igual às outras, mas não foi. Quando o telefone vibrou no meu bolso, eu me assustei e derrubei uma cebola, que rolou pra debaixo do balcão refrigerado dos iogurtes e lá repousou, fora de qualquer alcance. A moça que pesa os legumes me olhou entre irritada e exausta, como uma professora primária que tivesse perdido a paciência com seus alunos. Era cedo demais para receber uma ligação. Você vai ter que voltar, ele disse. É o meu controle do portão, parou de funcionar, não consigo tirar o carro, você saiu e me deixou pra dentro, eu preciso ir trabalhar, estou atrasado. Merda. Larguei o carrinho na seção de hortifruti, num canto onde julguei que não fosse atrapalhar ninguém. Pensei que talvez, se corresse, poderia voltar ao mercado e continuar a compra do ponto em que havia parado, aproveitar os tomates que já havia escolhido, tão bonitos. No carro, a caminho de casa, imaginava a cena um tanto deprimente da minha compra abortada, o imenso carrinho quase vazio, parado na frente das melancias, os clientes do mercado passando por ele sem saber se sua dona o havia abandonado de fato, como uma criança esquecida na escola, ou se na verdade estava logo ali ao lado, demorando um momento a mais para decidir se valia a pena levar a marca mais cara de manteiga. Um motoqueiro buzinou e me xingou, me devolvendo ao trânsito. Chegando em casa, entrei pelo portão de pedestres e abri o portão maior. Ele pediu desculpas, me agradeceu por ter voltado, me deu um beijo e saiu, com calma. Esperei o carro dele dobrar a esquina. Em seguida voltei depressa ao mercado, somente para constatar que alguém já havia recolhido o carrinho.

Pouco depois foi a vez de o meu controle sofrer um colapso. Era um fim de semana. Eu havia perdido o sono cedo demais e comecei a mentir para mim mesma, a dizer que aquilo era uma coisa boa, que o melhor era levantar logo da cama e procurar algo para fazer. Mirei-me no espelho, como fazia todas as manhãs, e não percebi nada de diferente, nenhuma ruga ou cabelo branco, muito embora eu tivesse certeza de que eles já estavam lá: olhar-se no espelho todos os dias é como não se olhar nunca. É necessário um lapso maior de tempo para perceber pequenas mudanças. Varri a poeira da casa tentando fazer o mínimo de barulho, que ele ainda dormia; aguei a horta e o pomar, que padeciam de cinquenta dias sem chuva; o café ficou forte demais, porque ele havia trocado a marca do pó e não me avisara. Depois fui passear os cães, que de outra forma não me dariam paz. Antes de sair, fiquei um minuto espiando ele dormir: revirava na cama, talvez em pesadelos. Na volta o encontrei mexendo no motor do portão, já com roupas de ir à rua, uma caixa de ferramentas aberta no chão ao seu lado.

Seu controle também pifou, estamos sem controle, ele disse. Fiquei imaginando aonde ele queria ir, tão cedo, num sábado. Talvez tivesse algo a ver com o sonho intranquilo de minutos atrás. Perguntei o que ele ia fazer com aquela chave de fenda, se o problema era no controle. Ele deu uma vaga explicação sobre a necessidade de se desligar o motor para abrir o portão manualmente, algo que ele parecia desesperado para fazer, como um participante de uma bizarra gincana que lhe valesse a vida. Percebi que minhas perguntas o irritavam, ou antes agravavam uma irritação preexistente. Fui para dentro, com a matilha me seguindo e babando gratidão pelo caminho. Passei o dia caçando palavras, afinal, era sábado. Já estava escuro quando ele desistiu e entrou.

No domingo ele quis tentar de novo, mas foi surpreendido por um temporal, que não estava anunciado. A urgência em sair, da véspera, sumira. Os dias começaram a passar cada vez mais rápido. Eu saía logo cedo para passear os cães, a única ocupação de nossa malfadada rotina que não dependia dos carros, já que morávamos longe de tudo. Os vizinhos não se importaram com o excesso de nossa presença. Ele inventou uma desculpa qualquer para contar no emprego. Recusava-se a tomar a circular para ir ao centro, um expediente que, por nunca termos utilizado, não sabíamos mesmo como utilizar e, sendo assim, dele não podíamos lançar mão, ainda mais numa situação irrefletida como aquela. Resultou que ele foi dispensado do serviço pouco tempo depois, por justa causa. Eu escrevia cada vez menos. Passávamos os dias jogando jogos de tabuleiro, que havíamos trazido da infância, e as noites bebendo (enquanto havia bebida) e contando histórias, muitas vezes sonhos que tínhamos tido. Lembro-me de vários. Em um deles, tomávamos juntos um banho tão quente que nossos cabelos e os pelos do corpo todo escorriam pelo ralo. Em outro uma lacraia entrava pelo seu ouvido esquerdo e saía pelo direito. Quando acordou, ele ainda podia sentir o movimento das patas dentro da própria cabeça.

Não sei dizer em que momento foi que percebemos: a vida como a conhecíamos havia terminado. A ração dos cães acabou antes da comida que ainda havia no congelador. Nossa horta não era grande o suficiente para nos manter aos dois. O pomar tinha sido mal planejado: as frutas eram todas de verão, e, apesar do calor descabido, estávamos no inverno. Não houve despedida. Eu estava sentada, escrevendo, pensava em desistir de tudo, jogar o texto pro alto, e ao mesmo tempo acompanhava os sons que ele fazia lavando a louça, quando o barulho cessou e eu pude ouvir o rangido que o ferrolho do portão de pedestres fazia ao se abrir. Levantei correndo, a tempo de segurá-lo pelo pulso, ainda molhado, e perguntar se ele se ressentia de alguma coisa. Ele disse que não. Eu disse que acreditava nele. Ambos estávamos mentindo. Subiu a rua como um animal atropelado que reaprendia a andar. Mais uma vez esperei ele dobrar a esquina.

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Bruno Vicentini
Maria do Ingá

Títulos protestados: 7 Impulsos de medo: 1.106 Sintomas neuróticos: 33 Horas semanais de catequização pela TV: 16