Arroz, feijão e brócolis

Suélen Dominguês
Maria do Ingá
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3 min readSep 28, 2020

Sabe que nem era meu intuito, ia no costumeiro mesmo, coisa rápida que me poupasse tempo. Fui pescando nas prateleiras — sem nenhuma novidade — o de sempre: sabão em pó, arroz, aveia, farinha de trigo, azeite, água com gás, cerveja e — foi então que o desejo encheu a boca.

Broccoli Tree — Shorra

O brócolis sobressaindo entre os brócolis. O mercado engoliu as vozes e ficamos a sós, dois tímidos entremeados. O verde robusto de alegria e frescor, com talos graúdos em carne nua. O pensamento salivou de querer, Um refogado cairia muito bem com a segunda-feira pálida; dá motivo pro corpo ter força e coragem pra enfrentar o mormaço que nem chegou a primavera e já salga na pele. Mas eu o desprezei.

Segui o proposto pela lista: 4 bananas, 3 cebolas, 2 cenouras, 1 punhado de vagens, 5 inhames, meio quarto de melancia, 1 abobrinha, 2 peras — o suficiente pra cumprir a semana. E lá fui pra fila do caixa. Vai entender o motivo que há no subsolo dos motivos, só sei que quando botei reparo, o brocozibido, abraçado ao meu braço, Me leva, sou muito gostoso. Se era pra ser, que seja.

Ele veio pulante na cestinha da bicicleta, bebendo do vento seus últimos goles de liberdade. Enquanto isso, encacuquei com o gostoso das coisas. O sabor da palavra. Sente na língua, Gostoso é signo e significante entrelaçados, a escrita apetitosa combina com o redondo do gosto dourado, barrigudinho, e o t de intruso. Abri o portão. Guardei as compras. Bebi água. Dei um ar.

O feijão era caso de esquentar. Coloquei o arroz pra cozinhar e deixei minha atenção inteira dedicada ao brócolis. A torneira boquiaberta jorrava água confiante da sua vocação de ser cachoeira, e o verde arreganhado experienciava a carícia corrente. A cozinha possuída por uma espécie de cumplicidade.

Um por um, os floretes desmembrados, não muito grossos, não muito finos. Os talos rebeldes guardei pra depois, uma farofa, não sei, talvez. Fato é que o pressentimento sorria de leve e silencioso. Prefiro pensar que meu brocolin foi cultivado numa horta de quintal, inocente dos agrotóxicos, por uma senhorinha de mãos longas caridosas. Prefiro acreditar que sim. Se digo, duvidam, Há muito excesso de amor no brócolis.

E eu — que gosto mais dos vegetais do que do mundo — senti pequena crueldade em ser ordeira do refogamento. Brócolis não sente dor! — alguém pode se atentar. Pois concordo, porém, de esguelha, Se a gente coloca envolvimento na ação, o sentimento comparece até em pedra. Ao dizer dor, os floretes se contorceram brocoxoxôs, magoados. Deve ser a fome; e dei alívio pra violência triturando a cabeça de alho.

O fio de azeite escorrega crepitante na frigideira, e o alho perfuma maresia grave pela casa, atravessa a janela, conquista os ares. É tempo de entornar os floretes. Poxa, que não ficassem zangados; teci a ladainha — que me foge — sobre a importância do sustento, de ter as proteínas necessárias pra aguentar os baques.

Não demorou muito, o exato pro feijão ganhar quentura, os floretes venceram o medo do fogo, desfeitos do broncolis e do cru — um toque de pimenta, um toque de sal — e se tornaram composição. Simples, al dente, mínimo. O arroz ficou pronto.

O tom floresta molhada crescente por entre arroz e feijão, de três se fez um: o prato preferido. Que o universo abençoe o alimento e que não falte refeição em nenhuma mesa, quem dera, mas assim seja. Comi com a fome humana de quem necessita e não sabe que sabe que necessita. Comi com gosto, sentindo as camadas mornas, o picante incorporado do alho, o breve tostado, a maciez do arroz e o grosso do feijão preto.

Na última garfada, a coincidência matou a fome. Eu e vida, que apesar de tudo vai indo, se estreitando, se alongando, encontrando seus gostares, vida e eu combinamos; e indo, a gente chega. Mastiguei bem e vagarosa. Daqui a vinte cinco anos ainda quero a lembrança da satisfação e do gosto de colocar intuição no prato que a gente come. Bebi café. Rabisquei frases soltas. Lavei a louça.

De pouquinho em pouquinho, a digestão me devolveu pra uma realidade suculenta. E a saciedade é o prazer do texto.

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Suélen Dominguês
Maria do Ingá

Contra a violência do mundo, a violência da palavra.