As mulheres da rua de dentro

Ana Favorin
Maria do Ingá
Published in
3 min readSep 21, 2020
Bar do Nanam, Rio de Janeiro

Algumas histórias apodrecem na minha cabeça, se arrastam entre as minhas orelhas por anos, no espaço vazio entre os olhos, nas cavidades do nariz e batem com os punhos fechados contra as paredes do meu crânio. Aí desistem, morrem por inanição e entram naquela espécie lenta de decomposição das ideias. Aí reaparecem. Tornam a sumir. Sei lá.

As unhas dela, da menina morta, arranham as paredes do lado de dentro e eu não a entrevisto, não falo com ela porque por mais diferentes que sejamos. Eu e ela. Somos a mesma. Deixa eu ver se eu consigo explicar. É que em todas as histórias estou eu e todas as dores dos meus 20 e tantos anos. Às vezes, eu só não quero ter que olhar.

Mas aí eu encaro. E quando olho fundo nos olhos fundos de mim, gosto da levada dessas mulheres mortas e tão vivas no mundo das histórias que ainda não foram escritas. Uma legião de Marias que nasceram em conversas despropositadas em cadeiras de plástico da Skol, salas de aula abafadas e cheias de mofo, nas ruas em que andei bêbada reparando nas pessoas vivendo suas vidas sem saberem que iam ficar pra sempre presas aqui na minha cabeça, pedindo pra virar uma promessa nas notas de rascunho do meu celular ou em um caderninho desses que eu insisto em carregar pra tudo que é canto.

Aí elas vão ficando. Morando às vezes mais pra baixo ou mais pra cima, ficando muito quietas ou batendo canecas nas grades e fazendo grande estardalhaço. Tem uma que dança sempre no meio de uma praça, com restos de uma fantasia encontrados na quarta-feira de cinzas. Pra essa, é sempre carnaval. A outra tá assim, de costas pra mim, retoca a maquiagem no bar do Nanã e eu vejo sua sobrancelha ser delineada pelo reflexo do pequeno espelhinho de bolso. Ela é um quadro, sempre assim paradinha, já faz anos. E tudo o que vejo de sua expressão é esse olhar intermediado pelo pequeno espelhinho de bolso.

Também tem uma, eu gosto muito dessa, trabalhadora, mãe de família, 45 anos, forte e bonita. Convencida pelo filho adolescente, estudou o ano todo pra fazer o ENEM, conquistar o diploma que foi adiado pelo casamento, depois os filhos, a vida toda trabalhando em casa de família. Depois de lavar a louça do almoço, sentava com os livros na mesa da cozinha, insistindo com a cabeça de que sim, era possível. Acabou que não deu certo. O casamento, a prova, o emprego. Acabou que não deu certo nada e ela escolheu logo a folha de redação no dia da prova pra contar essa história. Comoveu o corretor, que por acaso foi meu professor, mas essa história já é outra. Zerou mesmo assim. Tem dia que ela ainda estuda.

A outra, mais jovem, a doida dos signos. Leu no horóscopo do jornal que era o dia de grande sorte, dia de conhecer seu grande amor, quem sabe? Pisciana, coitada. Morreu atropelada pelo caminhão de gás assim que pisou na rua. É mais uma impressão, sempre naquela esquina, tentando andar com uma história que é só isso mesmo e mais nada.

Shhhh.

Elas ouviram tudo.

Me olham muito quietas e sérias, como se eu não tivesse o direito.

— Desculpa.

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