Cama, mesa e banho

Textura: a pele do texto
Maria do Ingá
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10 min readDec 19, 2020
Diane Di Prima

Cheguei na frente do hotel que eu já sabia onde ficava, olhei automaticamente ao redor da calçada procurando bicicletário, desci da bicicleta e imbiquei com ela na porta de vidro que se abriu, também automaticamente:

— Boa noite,

— Boa noite,

— Onde é o estacionamento de vocês?

Me perguntava se o fato de chegar de bicicleta faria o recepcionista pensar que eu não era hóspede, mas ele piscou servil e disse alguma coisa por debaixo da máscara que parecia [

— Oi,

Ele me disse sentando ao meu lado no sofá da recepção. Sorri um oi de volta e me retive observando seus olhos, tentando reconhecê-lo. Foi quando me dei conta de que não nos conhecíamos.

— Oi,

— O que você tá escrevendo?

— Nossa aventura de hoje.

— Desculpa a demora, eu fiquei enrolado no trabalho.

— Não tem problema, eu gostei de chegar antes e ter esse tempo pra escrever.

— Você quer dar uma volta ou já quer subir?

— Já quero subir.

Fechei o caderno, peguei o borrifador de álcool, espirrei na gente e guardei de volta dentro da mochila.

] uma orientação.

— Eu não tô te ouvindo.

O recepcionista repetiu e eu só ouvi o ruído de antes um pouco mais alto, mas dessa vez ele apontou o dedo para o outro lado do hotel e eu assenti com a cabeça. Andei metade de uma quadra e encontrei o estacionamento, com o portão se abrindo.

Então eu estava no terreno do hotel, e já me sentia alheia e desembaraçada. Soube que ali dentro também não teria bicicletário e comecei a procurar algum lugar em que pudesse prender a bike. Só havia a torre da caixa de água, enorme como uma torre, pintada de branco, atrás de um muro do estacionamento. Deixei ali, junto das latas jogadas e dos sacos de lixo amarrados, preocupada se passaria algum rato em cima do meu pé. Caminhei pelo escuro do estacionamento tentando memorizar as plantas ornamentais e imaginando como eu as descreveria depois: espetadas e virtuais.

— Boa noite.

— Boa noite.

— Como é seu nome?

— Gabriel.

— Michelle.

Sorrimos por debaixo das máscaras.

— Eu tô esperando uma pessoa, a reserva tá no nome dele.

— Como é o nome dele?

Respondi.

— Você sabe como ele fez a reserva?

— Acho que telefone. Eu vou esperar nesse sofá aqui, tudo bem?

— Claro, fica à vontade.

Olhei em volta.

Tirei o caderno da mochila.

Olhei em volta de novo, e comecei a escrever.

[ ]

Levantamos juntos do sofá, e fomos até a recepção fazer check in. Enquanto ele passava os dados para o Gabriel eu reparava nos padrões dos largos azulejos do chão e como seu brilho permitia o reflexo das luzes do teto.

— Fica $191.

— A gente divide?

— Sim.

— Divide em 2, por favor?

— Não, faz assim, passa $91 aqui, que fica mais fácil.

— Golpista.

— Eu comprei o vinho. Gabriel, você me arruma um saca rolhas, fazendo favor?

Gabriel sumiu e eu disse a ele que só agora tava me dando conta de que éramos estranhos, e ele respondeu que tinha achado corajoso da minha parte.

— Mas eu avisei todas as minhas amigas que eu tô aqui, e passei todas as informações sobre você, então se você resolver me matar, saiba que não sairá impune.

Foi nesse momento que percebi que eu estava correndo risco, que eu não tinha avisado ninguém, nem mesmo minha amiga que me perguntou, antes d’eu sair de casa, como é o nome dele? Sabe que qualquer coisa é só me ligar, né?

— Você pesquisou a minha vida?

— Claro, menti, arrependida por não ter stalkeado mais a fundo suas redes sociais.

— Encontrou onde eu trabalho e o vestibular que eu prestei?

— Só o seu trabalho mesmo.

Senti o frio no peito que o medo dá. Gabriel chegou com um saca rolhas antigo de metal e eu visualizei o saca rolhas atravessando a pele do meu pescoço enquanto aqueles olhos que me encaravam com marcas de sorriso me observavam falar, descontraída, sobre a possibilidade de morrer.

— Ser mulher é um inferno.

— Eu nem imagino.

— Quarto 232.

Agora, aquela façanha de mulher desimpedida e transgressora começava a se transformar, na minha mente, no começo de um filme de terror, em que eu terminaria por perder a vida para viver uma história com um desconhecido em um quarto de hotel.

Subi as escadas pensando em formas de escapar. Quando chegamos no 2º andar, torci para o quarto ser a porta de frente pra escada, mas era o último quarto de um longo corredor, como num filme clichê.

Ele tinha familiaridade com aquele cartão que substitui as chaves da porta, eu não.

A primeira leitura que fiz do quarto foi a de um repetido quarto de hotel, e toda a isenção que eles significam.

Deixamos as coisas em cima de uma bancada e tiramos as máscaras.

Ficamos nos olhando e sorrindo por um tempinho. O rosto dele era diferente do que eu imaginava pelas fotos, em que ele estava, na maioria das vezes, distante e/ou oblíquo.

— Você quer me dar um abraço?

— Quero.

Sua resposta simples e positiva diminuiu o meu medo em uns 30%, e durante o abraço me mantive desperta, embora envolvida. Resolvi testar a abertura da porta.

— Esse também é um procedimento de segurança?

Fiquei intimidada com a pergunta, mas afetei a mesma despreocupação da recepção. Testei a porta sem entender como ela funcionava, mas disfarcei desenvoltura.

— Sim. Eu comprei essas esfihas no mercado, tô morrendo de fome. Você quer?

— Não, eu jantei antes de sair.

— Então me conta a sua história de vida enquanto eu como.

— Minha história de vida? Como assim?

— Ah, vai contando sobre você, o que for surgindo na sua cabeça.

E ele começou a contar enquanto eu comia. Eu sabia que ouvi-lo falar de si, e tentar identificar verdade no timbre da sua voz, iria me ajudar a perder um pouco mais de medo. Ele foi contando e eu comecei a desenhar sua honestidade mentalmente. Alguma coisa no corpo dele condizia com o que ele falava, e fui ficando mais confiante.

Não era a primeira, nem a segunda vez que eu dizia diretamente para um homem que estava com medo dele, e percebia que ele evitava me tranquilizar, receoso que aquilo soasse ainda mais suspeito. Mas era sempre a única coisa que eu queria, que eles me olhassem nos olhos e dissessem que eram inofensivos.

Terminei de comer e pensei se seria uma boa ideia abrir o vinho e ficar ainda mais vulnerável, mas naquele ponto eu já estava acreditando que aquele seria apenas um encontro entre dois adultos com desejos.

Comecei o processo do lacre, e deixei apenas a rolha para ele tirar com sua força de homem. Senti um prazer benevolente diante da sua dificuldade em tirar a rolha.

Sentamos na cama, cada um com uma taça. Eu disse que não queria contar a minha história de vida, porque era muito comprida.

— A minha também.

— Eu sei, mas a minha dá muitas voltas.

Mas a verdade é que eu só não queria dizer o que dizia todas as vezes em um primeiro encontro, fazendo com que aqueles homens e aquelas mulheres formassem uma imagem exótica e piedosa de mim.

— Como assim?

— Eu já morei em muitos lugares, por exemplo.

— Muitos muitos?

— Muitos.

E conforme íamos conversando, íamos nos aproximando na cama, como se a intimidade tateasse os lençóis entre nós. Nesse ponto ainda me restava 10% de medo, mas uma curiosidade de decifrar sua verdade por meio do toque.

— Vamo dar uns beijos? convidei.

— Vamo.

Ele começou apressado e com uma língua rígida. Pedi que ele fosse devagar. A língua se manteve firme, embora ele tivesse desacelerado de pronto. Essa disposição em me ouvir e me atender me deixou mais confortável. Nos beijamos. Nos beijamos.

Olhávamos um pro outro como quem procurava e inventava.

— E essa cicatriz? Ele tocou as bochechas e eu especifiquei: nos seus olhos.

Ele procurou no espelho mas não achou. Quando sentou de novo na cama na minha frente eu percebi que eram pés de galinha.

— Quantos anos você tem?

— 30?

— Você parece mais velho. Muito perrengue na vida?

— Uma parte, mas eu não quero falar disso.

— Então eu não quero ouvir.

Mas ele acabou contando, de forma resumida, uma experiência voluntária de busca e fuga, de rua, de prática jornalista. Fiquei em dúvida.

— E essa tatuagem?

— É minha avó.

— E por que você tatuou ela?

— Porque ela me criou, ou porque eu sou muito canceriano.

Eu tinha prometido pra mim mesma que não iria perguntar o signo dele, porque minha terapeuta tinha me dito na sessão anterior que eu tendia a justificar as atitudes das pessoas de acordo com o signo.

— Canceriano?

— Sim, mas não acredito muito.

E a parte da vida que ele não queria ter contado passou a fazer mais sentido no meu julgamento viciado. Ele perguntou o meu signo e eu disse que não queria falar, que tava tentando mudar um hábito, mas disse que ele podia tentar adivinhar, o que não causou nenhum interesse nele, e eu gostei mais assim. E durante a noite, o signo dele surgia, pela casa da infância que ele carregava tatuada nas costas, ou uma inclinação melancólica que foi se apresentando devagar e cautelosamente nas coisas que ele dizia. Eu não queria dizer que também era canceriana, porque queria que ele, ou eu mesma, me estereotipasse como mais feliz do que eu realmente sou.

Foi falando sobre a morte, por causa do meu medo do coronavírus, que eu senti nos olhos envelhecidos dele, embora ele tentasse parecer indiferente ao assunto, o palpite de uma dor afeita.

— A morte é a paz, um descanso.

— Mas também é o fim de tudo.

— Exato, fim de toda essa desgraça humana.

— Mas das partes boas também.

— Bom é não sentir nada.

— As pessoas com depressão dizem que não sentir nada é horrível.

— Não sentir nada não nesse estado, em vida, mas na morte.

— Mas então não é bom, nem ruim, porque você morreu, você não vai saber/sentir.

— E isso é o bom.

— Bom é ouvir samba, jazz, tomar cerveja, vinho, comer um negócio gostoso, ganhar carinho, falar besteira, dar risada, ter amigos, fazer amor…

— Também.

A gente começou a se beijar, deitados, sem pressa. Tirei a camiseta dele para encontrar seus pelos do peito. Passei meu rosto neles, dando vida à sensibilidade do meu rosto. Ele tinha uma tatuagem embaixo dos pelos que significava que, apesar de tudo, estava lutando. Senti afeição pela forma como ele ficou tímido ao comentar sobre ela. Seu corpo era magro e marrom claro, os pelos pretos, o pau grande, o olhar escuro, e ele tinha uma presença madura, que dificultava meus julgamentos apressados.

E eu queria essa experiência, para amadurecer também.

Transamos como dois adultos livres, que se admiram mutuamente.

Ele gozou, eu não. Fiz questão de jogar isso na cara dele de diversas formas sutis até o dia seguinte.

— Quarto de hotel é sempre impessoal.

— Mas foi por isso mesmo que eu escolhi aqui.

— Por quê?

— Porque eu precisava sair um pouco de mim. Olhar ao redor e não me encontrar.

— Por quê?

— Pra pensar de uma forma nova, desapaixonada da minha própria identidade.

Dormimos abraçados. Acordamos cedo, com o barulho de uma pomba que parecia querer entrar no quarto. Nos cheiramos, beijamos, conversamos, mas a claridade do dia parecia ter nos roubado algo conquistado, na noite anterior, enquanto ele tocava o meu clitóris sem constrangimento no meio da penetração, ou enquanto me contava uma alegria juvenil; e na mesa do café da manhã parecia que estávamos competindo quem era mais autossuficiente.

Quando ele demonstrou humildade em um assunto qualquer, baixei minha guarda. Voltamos pro quarto e transamos outra vez. Cansamos de transar. Voltamos a conversar.

— Por que tem um velho testamento no criado-mudo de um quarto de hotel? Quais as heranças deixadas por esses testamentos?

Ele precisava ir embora, e eu queria aproveitar o café da manhã de novo. E queria também que ele me pensasse divertida, apesar de tudo aquilo que ele não sabia sobre mim.

Tomei um banho quente naqueles chuveiros potentes de hotel e convenci ele a fazer o mesmo. Gritamos do banheiro pro quarto quem eram nossos cantores favoritos. Desci antes, para não perder o último horário do café, e deixei ele se arrumando. Enquanto eu comia, pensava se morreria de coronavírus, sem viver todas as ideias que o meu corpo ansiava, e que eu, recentemente, começava a me permitir.

Ele entrou sorrindo no salão.

Busquei minha bicicleta e saímos pela porta automática, eu carregando a bicicleta pra não sujar aquele piso reluzente.

Nos beijamos sob a luz do dia e a silhueta das pessoas na padaria da esquina.

Eu disse que esperaria o uber com ele, mas seu telefone tocou, e eu o encorajei a atender, enquanto dava um abraço de despedida incerta. Subi na bicicleta e segui na contramão.

Prestes a chegar na esquina, decidi experimentar um caminho diferente pra casa, e subi, de novo na contramão. Logo vi alguém que parecia ser ele. O azul da camiseta me dava pistas, mas eu precisava que ele chegasse mais perto para reconhecer suas sobrancelhas. Era ele. Parei e ele desceu de bicicleta até onde eu estava. Tiramos as máscaras e antes de falar qualquer coisa nos beijamos.

– Quase que eu não pego essa rua.

– Eu também nunca venho por aqui.

Os carros começaram a passar atrás de nós e eu pensei que logo o Uber dele passaria ali, porque não tinha outro caminho possível da saída do hotel, e ele me veria na esquina, beijando outro homem, sem nenhuma explicação. E ele me beijava, como quem dizia saudade, e eu o beijava, como quem respondia também.

– Tava no mercado?

– Tava. E você, tava onde?

Sorri com todos os dentes e uma expressão de quem dizia sem dizer.

– De rolê?

– De rolê.

– Tô muito cansado. Vamo assistir um filme amanhã?

– Vamo.

Demos um último beijo de línguas sorrateiras, colocamos a máscara e nos acenamos já em cima das bikes.

Eu ria enquanto pedalava à caminho de casa. Sem maldade, eu ria. Mesmo sabendo que minha maior rebeldia faria apenas cósquinhas em Diane Di Prima, mesmo assim eu estava vitoriosa. Eu não pertencia a ninguém. Só eu compreendia minhas próprias circunstâncias, meus braços e pernas abertas, o coração na mão estendida, e o espírito no mundo.

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