Conversa com o tempo
o tempo não se quer culpado ou fitado
nem seguido na rua como se vestisse uma roupa engraçada:
meus motivos não lhe garantem um rabo
não sei dele patas ou garras
— o esforço de perceber seus rastros,
uma empreitada inútil
mesmo assim lhe atribuo milimetrias
rascunho sua superfície com certezas levianas
e ele o quê?
ri, me ignora,
nem me vê?
encaro sua falta de solidez
entre satisfeita e dúvida
e imagino o tempo
encurralado num canto
disparo perguntas desimportantes
seguidas de perguntas transcendentais
recebo o oco da sua falta de resposta
minhas poucas mãos juntam cacos de tempo
quero costurá-los do lado de dentro dos meus joelhos
eles fogem
o tempo foge e me alerta
que se possível
(sem pressa pra fazer sentido)
que se possível eu habitue
meus outros olhos
os que não chamo de olhos
a enxergar o que não tem palavra
fico entre agradecer, seguir conselho
e insistir em guardar o tempo
se não no próprio corpo
em qual parte deste espaço físico
eu conseguiria retê-lo
se entre ele
e o espaço
nenhum entre?
sei minhas intenções e atos
subordinados ao mesmo peso
que às vezes é nenhum
e me assombra essa passividade do tempo
esse estado insólito de relaxamento
(o não ser deve ser isso)
a contradição
é só saber o tempo vivo por acontecências
mínimas, que sejam
delas me ocupo.
Mayara Blasi é escritora, revisora, tradutora e professora de escrita. Contribui periodicamente para as publicações Maria do Ingá e Isso Não É Um Jogo.