CRIADOR E CRIATURA

Luigi Ricciardi
Maria do Ingá
Published in
7 min readSep 5, 2020

Quando você me quiser rever

Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

“Olhos nos olhos” — Chico Buarque

Fazia quinze minutos que estávamos em silêncio. Eu nunca imaginara que ela soubesse. Por isso a explosão em minha mente e a impossibilidade de organizar qualquer frase. Ela estava do jeito que eu sempre quis que estivesse: soprando aquele ar blasé que eu havia roubado de uma antiga namorada. Estava agora impresso nos músculos faciais daquela que estava na minha frente com luvas de veludo, um cigarro preso naquela cigarrilha démodée, sentada em um café de uma cidade que nem vale a pena ser identificada. Ela tinha uma pinta minúscula no canto inferior esquerdo dos lábios. Eu a quisera assim porque eu sempre a amei, antes mesmo de resgatá-la do limbo das personagens. Meu amor foi o que a resgatou da não existência.

Ela jogou toda a informação entre o café e o croissant, entre a água com gás e a tartelette de limão, como se falasse do tempo, das nuvens carregadas e da chuva próxima. Falou como se comentasse as coisas do trabalho, a inveja das colegas pela recente promoção. Havíamos acabado de planejar uma viagem para as férias, passeio tranquilo pelo interior do país, vendo os vilarejos antigos, provando da boa gastronomia, tudo para comemorar os trinta anos de união. Ela, a minha personagem, assim me escapava pelos dedos, havia me enganado, já sabia de tudo. Mas não tinha o direito de me sentir traído, eu havia ocultado tudo durante todos esses anos. Porém, o que me deixou mais perturbado foi o modo como disse.

“Descobri há cinco anos, desconfiava há mais de dez.” E então o tempo foi suspenso. Era como se eu houvesse interrompido temporariamente a narrativa. Estava impossibilitado. O mundo que eu havia criado acabara de se romper. Meu tempo foi limado. Os figurantes sem nome continuavam andando pelas ruas, conversando na rua ao lado, transando em algum apartamento apertado. E nós, protagonistas da história, estávamos ali frente a frente, uma criatura que descobrira seu criador. Eu acabara de ser despromovido. Eu não era mais o narrador. Minha personagem descobrira toda a farsa e tomara as rédeas. Depois de muito lutar contra o mal que se alojava dentro de mim, consegui perguntar.

“Como?”

“Foi quando eu consegui o novo emprego e você estava ainda de férias. Era o meu primeiro dia. Estava nervosa e acabei dormindo mal. Você roncou a noite toda, mais do que o normal, o que me impediu ainda mais de dormir. Mas me deixei deitada, na expectativa daquele novo mundo que me aguardava. Ficava imaginando como seria esse novo emprego, as novas rotinas, desafios etc. Você sabe como sou ansiosa, de modo que levantei mais cedo e fui fazer um café. Tentei trocar umas palavras com você, sem êxito. Deixei você semiacordado, meio que sonhando, murmurando palavras estranhas.”

“Decidi não pegar o metrô e fui caminhando até o trabalho. A manhã não estava tão fria e eu queria me sentir viva, por isso fui a pé. Vi muita gente indo ao trabalho, saindo com suas próprias preocupações em suas cabeças baixas fitando o chão. Notei como as pessoas eram tristes. Deixaram-se entrar em uma rotina da qual não poderiam sair e sem as quais já não poderiam viver. Isso era justamente o oposto para mim naquele momento. Talvez o futuro me reservasse, e provavelmente o faria, uma rotina massacrante, mas naquele momento eu me sentia uma aventureira, pronta para encarar o desconhecido. Mal sabia eu que uma reviravolta me aguardava além da esquina.”

“Pude jurar que vi teu vulto em cima de um prédio, perto da avenida principal. Duas quadras à frente, vi tua silhueta atrás da cortina de um café. Chegando ao local de trabalho, vi você comprando um cachorro-quente. Com vinte anos ao seu lado, acabei por me surpreender apaixonada assim, vendo você em todos os lugares. É claro, acreditei ser coisa da minha cabeça, fruto da paixão boba. Porém, isso se repetiu pela semana seguinte, e pela outra, e sem mais cessar. Todos os dias eu te deixava na cama do mesmo jeito. E eu sentia que você me seguia. Não podia ser só amor. Alguma coisa estava muito errada.” “Eu sempre fora cética, nunca acreditei de verdade em outras vidas, reencarnações, simpatias, rezas, deuses, olimpos e paraísos, você bem sabe. Sempre discutíamos muito sobre isso. Reparou que há algum tempo não discutimos mais a respeito? Eu me dei conta de que havia algo acima. E eu entendi tudo. Não antes de muito refletir e procurar a respeito.”

“Eu sou tua personagem, sempre fui. Entendi porque eu não tinha lembranças da infância, que o laudo médico sobre amnésia irreversível após meu acidente de carro quando jovem era falso, que sua antiga esposa nunca existira — segundo sua versão, ela tinha acabado de morrer no mesmo hospital onde eu estava de recuperação — e que aquele papo de querer ajudar alguém daquele mesmo hospital a se recuperar, pois deixaria tua alma mais tranquila enquanto ocupava a mente, e esquecer a morte da esposa, era também balela. Tudo era para me fazer crer que esse mundo aqui é real. Você escreveu todas as linhas desse mundo, inventou esses personagens figurantes, os nossos amigos, as situações, tudo foi planejado, inclusive a cura do meu câncer no pâncreas, quando os médicos já tinham me desenganado. Era tudo artificial, mas impressionantemente sólido para que você pudesse entrar e fazer as coisas normalmente, como uma vida comum.”

Caíra na minha própria armadilha! No início, é claro, eu era muito atento, planejava cada passo para não dar espaço para que ela desconfiasse de algo. Tinha que ser algo perfeito, completamente arquitetado, uma realidade completamente bem construída. Anos depois, com tudo correndo perfeitamente, fui aos poucos relaxando. Eu controlei bem, no início, minha curiosidade sobre a vida dela, mas depois desenvolvi esse lado voyeur, de ficar seguindo, vendo-a agindo normalmente, interagindo, vivendo. Sim, eu sei, eu sou o escritor aqui, eu a criei, criei o mundo no qual vivemos, criei todas as outras personagens, mas meus braços não são tão longos, então não posso controlar exatamente tudo o que se passa na vida de cada pessoa, nem mesmo na dela, mas posso mexer meus pauzinhos, como sempre fiz. Não velei mais corretamente e dei espaço para que ela me descobrisse.

“Seria melhor que você tivesse me traído com outra mulher. Ao menos eu seria dona da minha vida. Você se lembra da minha depressão e que você não conseguia entender o porquê? Era justamente porque eu tinha descoberto tudo e esperava que um dia você me contasse. Aí, de repente, decidi tomar rédea das coisas, decidi me recriar, nem só você pode ser deus aqui, querido, voltei a agir normalmente, deixei de tomar os remédios, simplesmente obtive cura, e tenho certeza que você acreditou que era por você ter conversado com o psicanalista. Ledo engano. Fui vivendo essa falsidade até onde dava. Descobri, nesse meio tempo, que eu poderia ser dona de mim mesma, mesmo sendo você o criador. Não é tão engraçado isso tudo? Eu devo a você minha existência, mas não devo a você minha vida. Foi aí que decidi te deixar. E estou fazendo isso agora.”

Eu sempre temi a descoberta, sempre soube que isso pudesse acontecer. O narrador nem sempre dá conta de tudo o que acontece. Eu deveria tê-la libertado antes, seria mais nobre. Tropecei no próprio medo da solidão, essa solidão de divindade, sozinho no seu céu, olimpo, paraíso ou qualquer outro nome que lhe dê. Esse tédio eterno. Agora é ela que descobre tudo e decide sair do “éden”. Eu escondera a verdade da minha criação mais perfeita.

“Fiz minhas pesquisas. Descobri tudo sobre você. Sua infância pobre em outro país. A imigração ilegal para cá. O sonho de ser escritor, de ser publicado, os amores fracassados, a descoberta de poder ser um semideus. Mas muitos podem ter esse papel. Eu também posso escrever o destino, não percebeu que nesse conto eu já assumi há muito tempo as rédeas da narrativa? Sou eu que falo, você escuta, eu estou agindo, roubei a tua história. Você me criou, mas sou eu que vivo.”

“Há algo também que talvez você não saiba, você também é um personagem. Conheci o escritor que te criou lá no trabalho, ele não cai na preguiça enquanto monitora suas criações, faz uma narrativa perfeita. No fundo quase não monitora, ele cria e deixa viver. Ele inclusive também é criação de outro escritor, mas aceitou sua sina. Também aceito a minha. Há algum tempo resolvi brincar disso também, criei vários personagens e fui libertando-os aos poucos. Lembra das horas extras no trabalho? Você não conseguia, é claro, ler o que eu estava anotando, achou que fossem planilhas, não podia vir conferir para não afetar a realidade. Criei vários leitores-personagens, todos aqueles que lerão essa narrativa também são minhas crias. Você perdeu inclusive seu próprio conto, meu querido. Essa foi minha traição, minha vingança, meu amor, ser maior, mais nobre e mais esperta do que você.”

“E você achando que era o único. Esse é o problema dos deuses e dos falsos deuses, acham que criam alguma coisa. E, quando conseguem criar algo, se creem gênios. Mal sabem vocês que fazemos parte de um círculo vicioso de criação e destruição. E que todos nós fomos criados por alguém e criamos outros. Nada é superior ou absoluto. Estamos em uma linha, e tudo é relativo. Termine aí agora sua narrativa, digo, minha narrativa, pois vou embora.”

Dito isso, deixou o dinheiro sobre a mesa, virou as costas e saiu andando. Eu perdera minha personagem, a minha preferida, a razão da minha arquitetura. Saiu rebolando e me dizendo com as ancas que esse era o fim. Olhando daqui, enquanto ela percorre a imensa quadra sem fim da capital, é como se flutuasse no universo, e desfizesse as histórias do mundo.

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Luigi Ricciardi
Maria do Ingá

Professor de Francês e Literatura Brasileira. Mantém o blog e o canal “Acrópole Revisitada”. Autor do livro “Os passos vermelhos de John”.