Criar para resistir

Vanessa Valles Leal
Maria do Ingá
Published in
6 min readAug 14, 2020
Foto de Bongkarn Thanyakij

Despretensiosamente, a criatividade sempre esteve no meu campo de interesses. No entanto, nos últimos anos, pude compreendê-la melhor e identificá-la em meus processos, por meio das oficinas de escrita criativa e de três leituras: Criatividade e processos de criação, de Fayga Ostrower, O caminho do artista, de Julia Cameron, e o capítulo “As águas claras: o sustento da vida criativa” do livro Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés. A partir destas reflexões, organizei uma espécie de “perguntas e respostas” sobre a temática como uma forma de sistematizá-la.

1) Só os artistas são criativos?

Não! A criatividade não é inerente aos artistas. Ela é própria da nossa condição humana, logo, todos nós somos criativos. Talvez, a pergunta mais adequada seria: eu estou criativo? Isso porque a criatividade está relacionada a nossa abertura ao mundo interior e exterior.

2) O que é criatividade?

Segundo a artista plástica Fayga Ostrower criar é atribuir forma ao que é novo. Nesse ato, projetamos nosso interior. Para discutir sobre criatividade, a poeta e psicanalista Clarissa Pinkola Estés nos traz a metáfora do rio e das águas, por meio do conto “La Llorona”, bem como a metáfora do fogo, com o resgate do conto “A pequena vendedora de fósforos”. A escritora e jornalista Julia Cameron concebe a criatividade como uma força/experiência espiritual.

3) De onde vem a criatividade?

Ostrower pontua que a motivação humana em criar surge da busca por ordenações e significados. Ela diz mais: “o homem cria, não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim porque precisa; ele só pode crescer, enquanto ser humano, coerentemente, ordenando, dando forma, criando” (OSTROWER, 2014, p.8). Entre os elementos que constituem a criatividade, podemos citar: a cultura, a sensibilidade, a percepção, a consciência, a memória, a associação, as formas simbólicas, os impulsos do inconsciente, a intuição, etc. Além disso, os processos criativos originam de “tudo o que o homem sabe, os conhecimentos, as conjecturas, as propostas, as dúvidas, tudo o que ele pensa e imagina” (OSTROWER, 2014, p.55). Fayga Ostrower, neste livro, discorre sobre cada um dos elementos mencionados acima.Clarissa Pinkola Estés faz algo bem legal em seu livro que é destacar as cinco fases da criação: inspiração, concentração, organização, implementação e manutenção. Todas essas considerações nos mostram que a criatividade não brota do nada, de forma aleatória. Não é um dom e não pertence apenas aos escolhidos.

4) Em qual fase da vida somos mais criativos?

É na infância que somos mais criativos. Não é à toa que as crianças são chamadas de arteiras constantemente. Ostrower explica: “nas crianças, a criatividade se manifesta em todo seu fazer solto, difuso, espontâneo, imaginativo, no brincar, no sonhar, no associar, no simbolizar, no fingir da realidade e que no fundo não é senão o real. Criar é viver, para a criança” (OSTROWER, 2014, p.127). Basta puxar nossas memórias da infância para atestarmos isso. Provavelmente, você está em outra fase da vida que não a infância. Julia Cameron tem a solução para tal impasse: alimente sua criança interior! Até porque “a criatividade reside num paradoxo: a arte séria nasce a partir de muita brincadeira” (CAMERON, 2017, p.150).

5) O que nutre a criatividade?

Em primeiro lugar, precisamos nos cercar de pessoas que apoiem nossos projetos e processos criativos para não sermos desencorajados prematuramente. Além disso, tanto Ostrower quanto Estés ressaltam o benefício de termos contato com outros seres criativos: “o que quer que seja tocado por ela [a criatividade] e quem quer que a ouça, que a veja, que a sinta, que a conheça serão alimentados. É por isso que a observação da ideia, da imagem, da palavra criadora de outra pessoa nos preenche e nos inspira para nosso próprio trabalho criativo” (ESTÉS, 2018, p.341).

No livro O caminho do artista, Cameron monta um plano de doze semanas a fim de recuperar, em seus interlocutores, o senso de: segurança, identidade, poder, integridade, possibilidade, abundância, conexão, força, compaixão, autoproteção, autonomia e fé. Fica claro, assim, que tais elementos são fundamentais para ativar nossa criatividade. Ademais, Cameron acredita que existem duas potenciais ferramentas que se propõem a nos alinhar com “a energia criativa do espaço”: as Morning pages e o encontro com o artista. Este último é uma espécie de poço ou, aproveitando as palavras de Clarissa, um repouso criativo que servirá de repositório do que sentimos e ouvimos (diário, pintura, história, dança, enfim, atividades que gostamos de fazer). Estés também elenca formas de recuperarmos a criatividade: aceitar o alimento, ser sensível, ser selvagem, começar, proteger o tempo, ficar com a vida criativa e protege-la, oferecer alimentos à vida criativa (tempo, sensação de integração, paixão e soberania) e, por fim, forjar seu verdadeiro trabalho.

6) O que destrói a criatividade?

Primeiramente, ceifamos nossa criatividade se a privarmos de todos os alimentos listados acima. Mas, ainda podemos destruí-la se nos rendermos à alienação, à desintegração, à desconexão interior, ao excesso de responsabilidades, ao medo de errar, às crenças negativas, à falta de autocuidado, à autossabotagem, às desculpas, à desorganização e à opinião destrutiva dos outros. Se você está sofrendo de um mal chamado bloqueio criativo, certamente, é em decorrência de um (ou mais) desses fatores.

7) Por que é importante criar?

A criatividade é um exercício que desenvolve nossa subjetividade e nossa humanidade (cada vez mais deixadas de lado devido à dinâmica do mundo). Ao criarmos, nos descobrimos e nos estruturamos, ou seja, fomentamos nosso crescimento interior. De acordo com Fayga Ostrower, “(…) a criatividade é a essencialidade do humano no homem. Ao exercer o seu potencial criador, trabalhando, criando em todos os âmbitos do seu fazer, o homem configura a sua vida e lhe dá um sentido. Criar é tão difícil o tão fácil como viver. E é do mesmo modo necessário” (OSTROWER, 2014, p.166).

8) Como é meu processo criativo?

Bem, considero ter um processo criativo abstrato, partindo de experiências epifânicas — de vislumbres poéticos que entremeiam o caos-cotidiano –, e outro intelectual, que surge de recursos, ressonâncias e repertórios despertados com as leituras teóricas e literárias, as oficinas de escrita criativa e os depoimentos de outros escritores. Escrevo no bloco de notas do celular, nos fundos ou nas margens de qualquer um dos inúmeros cadernos que tenho e no editor de texto do notebook. Escrevo do nada ou escrevo instigada pelos exercícios das oficinas. Os temas sobre os quais escrevo circundam a (meta)linguagem, o feminino, o místico, o simbólico e o fantástico.

Escrever é um processo brincante. Escrever é ter liberdade: liberdade para ser e escrever tudo o que eu quiser; liberdade para tentar e errar; enfim, liberdade para criar. Não sei aonde a escrita ainda vai me levar (embora exista o sonho de publicar um livro), mas não me preocupo com o fim. Escrevo e é isso. Acho que já temos muitas obrigações que nos aprisionam. Não quero que a escrita me prenda, quero que ela me liberte.

9) Como é seu processo criativo, leitor?

Creio que você já tenha esboçado, mesmo que em pensamento, como é seu processo criativo. Agora, dê forma ao pensamento e coloque seu processo no papel da maneira que você se sentir mais confortável. Não se preocupe caso você não consiga fazer isso de imediato. Talvez você ainda não se descobriu.

A partir de meus questionamentos e dessas leituras que me foram tão preciosas, fiz este mapeamento que de longe dá conta da complexidade deste tema. Recomendo a leitura na íntegra destes livros. Cada um deles tem uma abordagem específica. Ostrower, por exemplo, tem uma linguagem teórica e sensível ao mesmo tempo; Cameron, por sua vez, é prática e objetiva, oferecendo ferramentas e tarefas que vão auxiliar na recuperação da criatividade; por fim, Estés trata a criatividade de forma poética e analítica.

Em tempos como este, no qual a produtividade é extremamente valorizada, ter um espaço como este (ocupado por escritores, artistas e poetas criativos) é um ato de resistência.

Referências

CAMERON, Julia. O caminho do artista. Tradução de Leila Couceiro. Rio de janeiro: Sextante, 2017.

ESTÉS, Clarissa Pinkola. As águas claras: o sustento da vida criativa. In: Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 2014.

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