Demônios coloniais

Adriana Souza
Maria do Ingá
Published in
6 min readAug 20, 2020
Demônios coloniais

Enfim sós, eu e ela. Escutava suas palavras em meus pensamentos e sentia a angústia de estar sozinha com minha mente. Meus cigarros finalmente acabaram e a cerveja esquentou no copo, não sou de fumar, e após um maço de cigarros sinto o gosto da fumaça entranhado em meu paladar, detesto a sensação, parece que a vida tem gosto de tabaco barato.

Ela me acompanha nesse momento frágil, em cada disco tocado, cada tragada no cigarro, em todos meus pensamentos. É a fumaça que me inebria, o álcool que me entorpece, hoje ela é a lembrança de um passado com gosto de tabaco barato. Eterna companheira das noites frias, dos dias quentes ou chuvosos. Estava comigo em meu primeiro beijo e em todos os outros… Tantos homens beijei, poucos amei. Prefiro amar mulheres, são mais transparentes no que sentem. Quando amei uma mulher, tudo foi tranquilo.

Sua pele preta, seu sorriso encantador, não durou muito, um amor inesquecível de primavera. Me lembro de fazer carinho em suas tranças e pensar que a felicidade era um dia com ela ao sol. Talvez eu a tenha magoado — ela concorda comigo — eu a magoei. Amei cada detalhe de seu corpo. Me lembro do dia em que ela me disse quem era, choramos juntas e eu lhe assegurei que amaria cada parte de seu ser com a mesma intensidade. Não amei. A confiança que depositou em mim quebrou como cristal. Em pedaços.

Amei outras mulheres, mas nenhuma me transformou tanto. Amei Carolina e seu fusca verde. Amei Joana e sua coleção de HQs. Amei Julia com toda sinceridade.

Amei muitas mulheres, mas pelos homens fico devastada.

Já não tenho lágrimas, todas rolaram, sinto meus olhos inchados. Não tenho mais cigarros nem meus pensamentos, eles a acompanham, para onde quer que ela vá. Estou sentindo náuseas e sei que é reflexo do caminho que traço dentro de mim.

Abro outra cerveja e decido cutucar minha ferida. Fafá embalando meu sofrimento… Banho de cheiro 72.

Nosso primeiro beijo foi ao som desse disco, era um dia extremamente quente, talvez fevereiro ou março, eu estava embriagada de vinho barato, o que deixava o calor mais intenso. Eu estava totalmente apaixonada.

Ela estava comigo, me ajudou a escolher a roupa, trançou meus cabelos, pintou cuidadosamente meus lábios com vermelho rubro. Meu estômago não nos continha, a ansiedade saltou para a privada na noite anterior, a mulher que vomitou a felicidade de um primeiro encontro.

Estava totalmente apaixonada. Ele me encarava, par de olhos azuis que me olhavam com ternura e vontade, tímido atrás dos óculos, ele parecia muito inteligente. Ele, lindo, loiro, conhecedor de música brasileira, acabara de me apresentar o disco de estreia de Fafá, lindíssima. Fiquei instantaneamente apaixonada por essa mulher — ‘Dentro de mim mora um anjo que me sufoca de amor’.

Estava sufocada. Minha companheira, desesperada, grita comigo. Ela sempre me assusta com sua intensidade, não consigo suportar, está estourando meus ouvidos, tento abafar o som com minhas mãos. Ela confunde minha mente, me traz medo e angústia, quero arrancá-la de mim, tento tirar ela de minha mente pelos fios de meus cabelos. Inútil.

Ela está certa, ela nunca mente para mim. Foi minha culpa ele ter partido, tenho sorte de ele ter chegado, eu sou insuportável, burra, chata, feia, meu cabelo é horrível, concordamos com ele, 26 anos e não mereço Príncipes me salvando do alto de uma torre. Nunca fui princesa frágil, nunca fui posta em segurança. Todos à minha volta diziam: Vanessa é forte. Vanessa aguenta.

Não suporto mais.

Eu não deveria ter levantado minha voz, mas cada roupa que ele colocava em sua mala me doía mais que um tapa na cara. Ela gritava em minha cabeça e eu não a contive, deixei e ela me dominou.

– Você vai pra sua vadia? — nenhuma resposta.

Ele me encarava como quem olhava para o cachorro que iria abandonar na estrada.

– É ANGELICA O NOME DELA? EU SEI QUE VOCÊ TA METENDO COM ELA, EDUARDO. É POR QUE ELA É BRANCA?

Seu silêncio era insuportável, eu não sou merecedora nem de suas palavras? Não merecia desculpas esfarrapadas?

- NÃO FAZ ISSO COMIGO. EU SOU SUA, EDUARDO. EU TE AMO.

Grito meu ‘eu te amo’ em vão. Nada lhe causava afeito, não parava de arrumar suas coisas. Fui à procura de algo para chamar sua atenção, encontrei uma faca na gaveta da cozinha. Não me lembro ao certo o que aconteceu, mas me lembro da sensação gelada da faca entrando em minha pele.

– EU MUDO, EDUARDO, EU FAÇO O QUE VOCÊ QUISER. EU MORRO SEM VOCÊ. PREFIRO A MORTE A FICAR SEM VOCÊ.

Eu chorava desesperada. Senti meu sangue escapando de minhas veias em uma velocidade incrível. Seus olhos me encararam assustados.

- O QUE VOCÊ TA FAZENDO, SUA DOIDA? — ligando para uma ambulância.

O homem da minha vida me deixando. Não quero viver sem Eduardo. Lembro-me do nosso primeiro beijo, no momento tudo foi perfeito. Agora, revisitando em memória, tudo mais pareceu um erro. Eu destoava do espaço, meu lugar não era aquele, em um apartamento bonito no bairro universitário, eu não combinava com a mobília. Eu não deveria estar ao seu lado, eu não sou digna de um Príncipe de olhos azuis.

Ele fez com que me sentisse especial, finalmente fui vista por olhos que me amavam, que me desejavam e eu amava de volta e o desejava também.

Preciso de mais álcool, viro o lado B. Estou totalmente embriagada. Suas últimas palavras ecoam em meus ouvidos.

– Nunca mais me procure. Vanessa.

Certamente, ele estava em busca de sexo anal, eu nunca gostei, sentia dor… ele insistia, dizia que não era justo eu ter uma bunda tão grande e não deixar ele se divertir. Eu cedia e ele se lambuzava, eu cedia por amor, não é isso que as mulheres devem fazer para provar seu amor? — Abro outra cerveja — Ele não entendia como uma mulher preta não iria gostar de sexo anal.

Aposto que ela geme de prazer e não de dor.

Talvez eu devesse ter cedido mais vezes, ou eu devesse ter fingido melhor, decerto ele percebeu que eu preferia carinho a ser dominada como submissa. Ela concorda comigo e embrulha meu estômago. — Ela é mais bonita que você — Eu concordo com ela, seus cabelos lisos, seu par de olhos verdes. Ela combina com ele. Eu que estava no lugar ao qual não pertencia. Foi sorte minha ele me querer, ele mesmo me disse, várias vezes…

Nunca fui tão feliz e nunca fui tão triste, os polos opostos do sentimento, céu e inferno. Ele sempre me fez sentir muitas coisas. Era feliz com seu olhar terno enquanto cozinhávamos, temia seu olhar de desejo quando cheirava cocaína e queria transar. Gostava de seu tom calmo me explicando a métrica de um poema, detestava quando gritava que eu não era boa o bastante para ele.

Agora ele me deixa com minha dor e a lembrança de quando fui amada. Eu não deveria mais existir, qual o sentido de viver uma vida quando se sabe que nunca será amada como amam uma mulher branca? Encaro a cicatriz em meu pulso, desejo arrebentar os pontos e sangrar sozinha até eu ou ela desaparecermos.

Ele nunca me apresentou para a mãe, sempre me dera uma desculpa para não formalizar nosso relacionamento para a família. Ontem, sua irmã compartilhou uma foto do almoço de domingo da família Schmidt, quatro anos de namoro e ele não me levou para conhecer os pais… Sei que eu destoaria do ambiente, ela sorria perfeita ao seu lado na foto. Era seu lugar.

O que me mata agora não é a partida dele, mas a não chegada de todos os outros. Ninguém me amou como eu queria ser amada, como eu deveria ser amada, mas me amavam como aprenderam a me amar. Não leve a preta para conhecer a família, não saia de mãos dadas com a preta, coma ela escondido dos amigos, preta é safada, mulher preta é forte… Não aguento mais o olhar que me lançam, não sou forte e desabei em minha solidão.

Otávio, meu primeiro amor, nunca me beijou. Foram tantas vezes que cogitei lhe pedir um beijo, nunca tive coragem. Sempre que eu fazia amor, ele me fodia violentamente, um beijo ou um carinho era inimaginável. Nunca tive mais que um motel barato e um sorriso amarelo. Um dia, estava em um bar com os amigos da faculdade e o cumprimentei. Fingiu que não me conhecia — ‘não é ninguém, ela me confundiu’ — Sempre confundi os homens que amei: Vanessa é bicho ou Vanessa é gente?…

Toda vez que me submeti a homens foi por querer ser gente, nunca consegui. Nesse momento estou cansada de tentar ser gente. Sorrio, pois sei que não estou sozinha e sei que agora não preciso ser forte. Estou aqui acompanhada de meus demônios coloniais. Me levanto, comprarei outro maço de cigarros.

--

--