Desalento

Eloisa.
Maria do Ingá
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3 min readOct 17, 2020
Fotografia feita por Sander Trento, publicada no Museu do Isolamento, via Instagram.
Fotografia feita por Sander Trento, disponível no Museu do Isolamento Brasileiro

Na TV do hospital, alarde sobre os benefícios da tomografia preventiva aos pacientes com risco de câncer. De graça, o Estado paga tudinho. Auxilia em até não sei quantos por cento dos casos de cânceres letais. Precaução, uma beleza, só que mentira. O Estado não tem pago exame de fezes, de imagem, admissionais. O Estado não tem disponibilizado exames suficientes para a COVID-19, o vírus que assola o século XXI, esse mesmo que o presidente do Brasil se referiu como uma gripezinha. Ai… 59% dos brasileiros em situação de desalento. Desalentados. Desalento é o nome que as estatísticas dão a quem não sai mais à procura de emprego.

- Não tem não — me disse o cabeludo com a clavícula deslocada, aguardando atendimento no pronto-socorro, enquanto reclama da dor do osso saltado à pele — Não adianta procurar trampo e, pelo jeito, nem esperar nessa fila.

- Num seria melhor privatizar tudo? — Um senhorzinho que ouvia nossa conversa se intrometeu — Ouvi por aí que no Santa Casa eles atendem rapidinho, não tem dessa da gente esperar aqui na fila ardendo em febre, não. É vapt vupt.

- Ilusão bonita — eu o lembrei.

- Não é bonita não, fi. E os que não têm pra paga? — o cabeludo retrucou — Pode construir mais mil delas, que nós continuamos não chegando nem perto. Isso é serviço pra quem cuida do dinheiro dos nossos impostos, de gente que colocamos lá, supostamente, pra cuidar da gente.

O senhorzinho não respondeu. Silêncio. Do meu lado, dorme uma mulher. Sacola cheia no lugar do travesseiro. Posição fetal, embalante dos sonos de moribundos desabrigados.

- O que é que eu faço com essa peça aí, hein? — O guarda indagou ao recepcionista.

- Deixa ela dormir mais um pouco, pelo menos até o hospital encher mais, ou o sol nascer.

Na madrugada gelada, os pés da mulher se contorcem. Calcanhar cascudo. De gente que anda de chinelo o caminho todo e que, quando ele quebra, usa o prego pra prolongar mais a vida (in)útil do objeto. As mãos, involuntárias, seguram a falta, o descaso, a ausência. Palpável: era uma coberta, agora é chão gelado. Acorda, enxuga os olhos. Jeans surrados, não aqueles da Arthur Thomas. Rasgos legitimados pelo tempo, sem dedo do look de hoje.

O que lhe cabe deste mundo é o pátio contaminado de hospital. O vaivém dos pacientes acamados. O derrame, a falta de ar, a pneumonia sem precedentes, a úlcera, a bactéria, a mulher sem moradia, grávida e caída no chão. Gente asfixiada, morrendo afogada no seco. Os gritos. A família que chega chorando, porque a mãe acabou de morrer no corredor. Esta é a sua cantiga de ninar.

Na TV, amanhecia. O clima das capitais brasileiras. 27 graus em Cuiabá. Uau, que quente. Chove em Salvador. Balsa afunda e mata dezenas de pessoas. Tragédia. Em Maringá, não se faz ideia. O que dá para perceber é que não há quarentena para quem dorme no cimento e não tem álcool em gel que besunte a capacidade mortífera de um sistema que queima hectares de sua fauna e flora em nome da barbárie disfarçada de progresso.

A mulher acordou assustada, me perguntou a hora e saiu com pressa. O guarda que tinha deixado ela dormir, gritou da guarita:

- Corre que cê já tá atrasada pro trampo, minha senhora. Zarpa rápido que ainda dá tempo. Só não esquece a máscara. O vírus tem matado 200 mil de nós.

A mulher voltou atordoada do esquecimento, pegou a máscara que velou seu sono como travesseiro e que lhe acompanharia na labuta. Organizou os trapos, bateu a poeira acumulada da madrugada fria, me deu um sorriso e saiu pelas grandes portas do hospital.

Ainda dá tempo, eles disseram. Só faltou foi explicar do quê.

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