Dois pés no peito

Ana Favorin
Maria do Ingá
Published in
2 min readNov 28, 2020
Colagem da autora

A semana atropela meus pés e ouço meus ossos estralarem, massacrados sob as rodas de um caminhão tanque inventado no mesmo instante na minha cabeça. A má impressão dura menos de um segundo, mas a sensação dormente se espalha em mim. Morro um pouco às 7h30 da manhã.

Um moleque pequeno atravessa meu caminho. Ô, tia, um trocado. Cara fechada como se fosse de botar medo, canivete cego preso no elástico do calção de time. Tenho não. Ar de riso, peito vivo que aperta um pouco como se não quisesse bater.

Outro tanto eu morro, às 7h46, precisamente, quando bato o ponto na fábrica. Todo lugar é fábrica de alguma coisa que a gente vende, que se vende, que é vendida, mesmo que essa coisa não se pegue com as mãos e não se embale em caixa nenhuma. O peito da gente é fábrica de vida pra gastar, o coração bate e fabrica o tempo, mesmo se não quer bater.

18h01. Bato o ponto. E sinto uma pontada no calcanhar. Só me faltava um esporão a essa altura do campeonato, um pé que não quer pisar. E dói. O caminho do ônibus, esse já batido amparo poético, amorna a cabeça cheia de umas 100 pessoas cansadas. Eu, do lado de fora, indo pra casa com pés cheios dos ossos que ouvi quebrar, um a um, pela manhã. Coisa mais besta ir e vir todo dia de um lugar para o outro, pisando o mesmo chão da cidade que é a mesma também.

Eu sempre penso muito quando caminho pra casa no final do dia, pelo menos dois tantos assim mais morta. Eu penso muito. Na sexta-feira, excepcionalmente, eu penso no sábado e na roupa a lavar, primeiro as brancas, depois as coloridas, por fim as pretas. Estico o dia na minha cabeça para caber um poema e um beijo na boca demorado. Como os de quem não tem que lavar roupa aos sábados.

Em casa, as plantas cabisbaixas. Logo se erguem com um pouco d’água e conversa. Deito olhando o teto branco, os músculos vão relaxando devagarzinho e desamarrando o dia inteiro de morte e vida e pé que não quer pisar. E creck! O esmagamento de ossos. Escancaro os olhos com uma pontada aguda. É o coração. O pé não quer pisar, o coração não quer bater.

A vida encerra o combate. Uma voadora com os dois pés no meu peito. E amanhã era sábado.

--

--