Durante as sonecas de domingo

Estela Lacerda
Maria do Ingá
Published in
2 min readNov 22, 2020
Por Cristian Blanxer
Por Cristian Blanxer

depois do almoço de domingo era sempre a mesma coisa:
meu pai dormia espalhado no quarto
minha mãe ia pra rede
o vô e a vó dormiam no sofá vendo tv

enquanto todos estavam na soneca
eu fingia que dormia no chão da sala
num colchão velho de solteiro
[desses que a gente deixa pra visita]

eu gostava de ouvir os ruídos dos móveis velhos
escutar a goteira da torneira da pia da cozinha
olhar o reflexo dos objetos no chão encerado

mas o que eu mais gostava mesmo
era olhar os pés de cada um que dormia
me deslizava silenciosamente pela casa só pra isso

os pés do vô eram magricelos
e tinham unhas amareladas e judiadas
de tanto usar botinas

os pés da vó eram como pãezinhos de leite
pareciam macios, fofinhos e leves
como seus chinelinhos de ficar em casa

os pés do meu pai tinham muitos pelos
eram os mais achatados que já vi
cheio de calos e bolhas causados pelos sapatos

os pés da minha mãe eram delicados
tinham unhas coloridas que ela mesma pintava
dizia que devia ser exemplo no salão onde trabalhava

sobre o meu pé
bem, eu não sabia o que dizer dele
era um pé sem grandes andanças
poucas pedras ou cacos de vidro

[tão difícil falar da gente mesmo]

eu só sabia que aqueles meus pés
número 34 de um lado, 35 do outro
não queriam arredar dali

teimosos feito ervas daninhas
meus pés queriam criar raízes
se firmarem ainda mais

as raízes foram se espalhando
l e n t a m e n t e
durante as sonecas de domingo.

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Estela Lacerda
Maria do Ingá

escritora • mediadora do #LeiaMulheres • mestra em estudos literários • gerente de conteúdo