Entranhas no ninho

Textura: a pele do texto
Maria do Ingá
Published in
3 min readSep 1, 2020
por Tyler Spangler

As bananas dando seus sorrisos amarelos de cima da mesa. Do portão, o gato me engata na sacada. Eu o atiço e ele mia grave: sabe onde me encontrar. Sobe as escadas e vem dar com a cara na porta do apartamento. Ofereço ração e ele rejeita, quer carinho. Eu não tenho carinho pra dar. Fecho a porta e ele reclama com necessidade. Penso na solidão que nós, bichos, sentimos. Quantas ninhadas abandonadas, quantas fêmeas partidas. O primeiro gato que eu tive na infância foi um filhote encontrado de pelos espetados e olhos bem abertos. Queríamos tanto cuidado. Passou uma noite com a gente. Na manhã seguinte, tudo cagado, a cama de cobertores em que dormíamos, todas juntas, até meu rosto lambuzado. Eu ia aprendendo com os fatos, que a vida se sentia no corpo próprio. A nossa mãe desmaiada em depressão. Gastava o pouco do vigor que sobrava em buscar algum amor trazido pelas ondas da praia ou em nos ensinar alguma lição. A gente apanhava sem motivos e conhecia novas palavras: maldade, desespero, incertezas. No dia seguinte ela se desfez do gato, senti alívio e saudades. Sofrer, crescer. Mas eu não crescia, definhava em medo e anemia. Sorria à revelia insistindo em ser criança. Brincava de tamancos e gel no cabelo que eu era gente como a gente não era. Porque a gente era triste e carente, todas nós. Mas. Eu tinha uma irmã com quem conversar e brincar de fingir que a vida era boa, que o almoço estava na mesa e o dia saciado. Inventávamos juntas a própria capacidade de se inventar. Forjávamos tramas encantadas e precoces. Dominávamos os segredos das novelas, desconstruíamos as tradições infantis. Lápis de cores podiam arquitetar tudo, inclusive a estrutura da casa em que não morávamos. E as bonecas barbies se divertiam, passeavam, arrumavam namorados, até transavam, do mesmo jeito que a gente enxergava no escuro do quarto. Depois se casavam com vestidos de gala, e adotavam gatos, que mamavam leite de suas tetas de plástico. E fomos nós duas, no meio de tudo, todos os dias, até que a gente virasse adultas. Adolescentes. Eu não sabia como agradecer, ela ter dado a infância dela, para cuidar da minha e dos outros filhotes que apareciam. Até o dia em que ela me disse, que a minha criança tinha cuidado da dela também. A lembrança dela e a espera do gato me (con)vencem, abro a porta e me ajoelho dizendo a ele para não se acostumar. Ele se contenta com o pouco que eu dou, e retribui com a língua. Lambe meu coração morno como quem lava ferida. O pelo quente e curto das suas orelhas me traz de volta pro domingo. Calculo que já é carinho suficiente, ele entende e não insiste. Fecho a porta lhe dizendo que é bem-vindo, mas que nem sempre vai me encontrar.

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