Eu mordo a maçã

Thays Pretti
Maria do Ingá
Published in
2 min readJun 21, 2021
Aquarela da autora

Eu mordo a maçã. Bebo o sumo que brota da polpa ferida. Com o olhar perdido longe, com ar blasé. Mordo a maçã até que só me sobrem os dedos. Infernalmente, mordo a maçã.

Eu gosto do som da mordida. Gosto de sentir meus dentes rasgando a lisura inútil da maçã, em seu despropósito de ter casca. Eu lambo a dor na pele da fruta, a doçura de um pecado de fome. Mordo com a calma de quem aguarda a fermentação da sidra. Minha mordida dura o tempo que já dura o tempo, feita de agora para o antes, vinda da ancestralidade que habita em quem, um dia, antes de mim, mordeu a maçã. Uma genealógica linha de bocas conjuntamente mastigando o núcleo, desfazendo a forma, se nutrindo da carne branca da maçã roída.

Vejo teu olhar pregado no meu maxilar semovente. Eis teu corpo transformado em fruto e pregado na minha mão. Tomo-te e como-te. Nossos olhos se parecem, fundos, negros. Nossos cabelos e peles se parecem. Nós poderíamos facilmente nos fundir em um único corpo, uma única respiração. Salivamos ao nos cruzarmos pelas ruas, eu sei. Leio isso no olhar não desviado, sustentado preso e forte. Mas não nos aproximamos: há prazer na distância, na fantasia da luxúria do toque. Enquanto isso, mordo a maçã como se mordesse teu pescoço magro e longo, a mesma carne firme sob meus dentes, a textura na língua. O corpo todo (meu e teu) vibrando a mordida. Nos nutrimos ambos, vencemos a fome. E seguimos.

Não sei se um dia haverá tua mão na minha, se um dia saberei teu peso sobre o meu. Não importa. O gozo compartilhado existe toda vez que nos afundamos em nossos olhos, sérios, sedentos, ávidos, sob a negras sobrancelhas que preservam dos olhos alheios nossa completa nudez.

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