Eu, parede cal concreto

Ana Favorin
Maria do Ingá
Published in
2 min readMar 2, 2021
Colagem da autora

E eu teço diálogos com Carlos, mais que com minha avó que não entenderia se eu lhe dissesse que o amor resultou inútil. Sim, o amor embolorou na prateleira do peito, vó. Data de validade vencida, umidade demais, de menos, sei lá. Na embalagem barata do amor, um casal, desses de banco de imagens pago, sorri amarelado de poeira e falsidade.

Mas a vida prossegue. Sem mistificação igualzinho naquele poema que parece alfinete espetando na carne que eu já não tenho. E eu não sou delicada a ponto de preferir morrer, desculpe a decepção. Eu não sou delicada a ponto de deixar os joelhos tremerem quando a mão de uma criança pesa mais que o mundo. Talvez você não desculpe a decepção, Carlos, de dar-se conta de que fizeram silêncio, paralisaram os negócios e flor alguma resistiu ao rude asfalto.

Eu que não sou delicada e piso o piche todos os dias, me arranho um pouco no áspero do concreto dos corredores cotidianos que são estreitos demais para os meus quadris. Que são escuros demais para os meus pés número 34 que não aguentam direito o peso de 25 anos esquisitamente empilhados em mim. Eu. Pequena e feia, a repetir o mesmo pronome pessoal como se importasse. Como se fosse um algo. um quê. uma vírgula no mundo.

Puxo o ar do fundo do estômago de pedra e sinto que ele sai arranhando e arrastando fuligem, bolor, fumaça e cansaço, raspando por dentro da garganta como se tivesse unhas muito afiadas. E sai, finalmente, numa manifestação sonora esquisita, perdida entre o suspiro e o gemido. Um grunhido do que não é pronome, nem gente, nem nada. Um punhado de areia diluído no cimento que compõe a cidade.

Eu ,

uma deformidade na enorme parede que se ergue irremediável no centro da cidade. Já não se distingue o que era areia, cal, água, a pá, o andaime, a mão do pedreiro, o sol, eu…

um incômodo na parede lisa, perfeita, um erro no milagre de concreto, aço e vidro.

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