Funeral da borboleta

Estela Lacerda
Maria do Ingá
Published in
3 min readMar 7, 2021
Por Cindy
Por Cindy Loughridge

Eu vi uma borboleta morta no quintal de casa. Fiquei triste porque, bom, eu tenho três motivos. Primeiro porque era morte, uma coisa sempre triste. Segundo porque era a morte de uma borboleta, e eu tenho uma fascinação gigante por esse inseto, é leve e, ao mesmo tempo, rústico, o corpinho tão pré-histórico, mas as asas tão modernas, coloridas e livres. Terceiro porque ela era azul, a minha cor favorita, é a cor do céu, dos mares, dos meus óculos e das minhas canetinhas que uso pra grifar os livros que minha mãe me dá, depois de eu implorar uma série de vezes e lavar muita louça pra ela.

Pensei em fazer um funeral pra borboleta. Bonita daquele jeito, acho que merece. Então, fui até outra ponta do quintal, colhi umas flores daquelas laranjinhas que minha vó chama de cosmo laranja, é aquela que dá picão, sabe? Peguei umas palhas pra deitar o corpinho dela que nem um jesuizinho. Ainda achei que faltava um verde e decidi pegar um pouco daquela graminha que é chamada de amendoim. Acho que pra um funeral improvisado por mim, que tenho zero experiência com isso, tava bem bom.

Quando eu voltei, a borboleta não estava mais lá. Briguei com o cachorro, dei tapa bem forte na boca dele porque com certeza ele tinha engolido a finada, e ele me olhou com cara de que eu tava fazendo injustiça e era uma doida. Parei e pensei e me arrependi. Lembrei de quando meu pai deu um tapa assim na minha mãe, por um motivo que eu não entendi direito, porque, na época, era muito nova pra entender. Eu só sei que, depois disso, meu pai teve que fazer as malas, porque minha mãe mandou, achei que ela ia ficar feliz por causa da saída dele, mas depois ela chorou tanto que eu não sabia o que fazer, eu só fiz carinho no cabelo dela. Fiquei imaginando meu cachorro indo embora também, com as coisinhas dele, pedi desculpa, disse que tava nervosa e tratei de abraçá-lo bem forte, pedindo pra que nunca me abandonasse.

Oquei, não foi o cachorro. Tinha que encontrar a borboleta! Olhei em volta e… ela se movia. Já comecei a lembrar dos filmes de terror que eu andei assistindo sozinha e às escondidas, porque minha mãe me proibia. Pensei que a borboleta pudesse ser como aqueles zombies, que me impediam de dormir, mas depois mudei de ideia, porque uma bichinha tão linda daquela não podia ser um troço tão macabro.

Ela se mexia bem devagarinho, então tomei coragem e olhei de perto. A borboleta estava sendo carregada! As asas coloridas pra cima, as formigas embaixo, como se estivessem dançando. A procissão parecia um funeral feliz! Eu sorri e corri contar pra minha mãe, minha vó e minhas tias que tomavam café na cozinha. E elas riram. De mim, claro, não para mim. Todas ali, com as suas xícaras nas mãos, me olharam com ar de compaixão, pelo jeito não acreditaram na minha história.

Acho que é porque minha mãe vive dizendo que eu fico inventando muita história desde que meu pai foi embora, que era um jeito de chamar atenção porque eu não tinha meu pai por perto pra me paparicar o tempo todo. E ela estava muito errada, o funeral da borboleta aconteceu, e eu queria muito mostrar pra ela!

Também queria mostrar os textos que eu vinha escrevendo num caderninho que a professora de português me deu, mas fiquei com medo de que ela dissesse que era só um monte de mentira. E são mentiras mesmo, mas boas, dessas que as pessoas podem ler e se divertir.

Quem sabe um dia todo mundo acredita em mim, quando eu for uma escritora famosa, dessas que lançam livros e fazem funerais pra borboletas com as flores do quintal!

[A ideia desse conto veio de um tuíte do escritor Miguel Sanches Neto.]

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Estela Lacerda
Maria do Ingá

escritora • mediadora do #LeiaMulheres • mestra em estudos literários • gerente de conteúdo