mamãe, eu sou a sapa da família

Suélen Dominguês
Maria do Ingá
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4 min readJun 18, 2021
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Era pra ser somente mais uma manhã embalada pela efervescência cultural e política da década de 60. Antes, vale lembrar que o mundo estava polarizado entre Estados Unidos e União Soviética — nos meandros da Guerra Fria. De um lado, os donos do money protagonizavam o american way of life: prosperidade, homem bom trabalhador, mulher com a barriga no fogão, louvado seja deus e o consumismo. Do outro lado, jovens libertários no sexo e nas drogas ensaiavam a rebeldia da contracultura.

Entretanto, nas primeiras horas da manhã de 28 de junho, de 1969, em Greenwich Village, um confronto deixaria até a dimensão histórica pasma. Que o conservadorismo usa farda, sabemos; por isso, surpresa nenhuma quando um bando de policiais invadiu o bar Stonewall a gritar Bichas, o show acabou!

Não dessa vez. Lésbicas, gays, trans, drags e simpatizantes enfrentaram a corja num confronto considerado o marco do movimento LGBTQIA+ (só não podemos esquecer que antes de Stonewall muitos movimentos pelos direitos das mulheres, dos negros e os gritos de revolução sexual já haviam afofado um terreno propício às mudanças).

Foi 6 dias de protestos, violência e rua. No fim, algumas conquistas, um pouco de esperança e um movimento ganhando novos contornos. No desenredar, junho ficou marcado como o mês do orgulho LGBTQIA+ e a luta de Stonewall é relembrada no 28 de junho como uma grande vitória histórica.

Mas calma aí porque esse babado tem muitas camadas.

Arreganhando as pernas num salto histórico (muita treta aconteceu no entremeio), caímos aqui: nos revolucionários de porcelana. Na in(visibilidade). No pink money. Na indústria cultural. Se se ser tem um preço, o capitalismo dá um jeito de cobrar imposto em cima. Eu tinha uns 14 pra 15 anos, por aí, quando descobri o hino The L Word (2004–2009) — uma série, com 6 temporadas, que acompanha a rotina de um grupo de amigas lésbicas.

Fui time Bettina forever. Se gosta de drama, estoura a pipoca!

Mulheres bem-sucedidas, magras, em sua maioria brancas — o padrãozinho da mulher dita gostosa. Mulheres intocáveis que o mundo jamais poderia derrubar. Então, eu — que me torturava por estar cometendo o pior pecado da vida dos meus pais — soube que um dia a aceitação chegaria, no entanto, antes eu precisava arrumar um jeito de ser ryca.

Se era pra ser transgressora, The L Word beijou a bunda do capitalismo, normatizou um estilo de vida elitista e dormiu com a família conservadora. Há uma tolerância: é permitido mulheres se beijarem e transarem na frente das câmeras, mas não ouse destruir o sagrado giro capital. A mesma velha história: ouse no conteúdo, maquie a violência e oprime na forma.

Se você é lésbica/bi e tem entre 25–30 anos, provavelmente vibrou quando, em 2019, das cinzas ressurgiu The L Word: Generation Q. Esperamos por esse dia como quem espera pela mulher maravilha.

E como era de se esperar, a surpresa foi — mais uma vez — não surpreender.

A mesma e repetida forma. Mulheres lindas, ricas, poderosas, empoderadas pelo cartão de crédito. Assisti cada episódio puta da vida, engolindo a decepção na saliva da raiva. The L Word não só inspirou uma geração, ela ajudou a modelar uma geração carente de referências — ser lésbica não é obsceno (não é bem-visto, mas é tolerado — os movimentos de 60 desencadearam isso).

O que não deve entrar em cena é a pobreza, a lésbica expulsa de casa, que vive na rua, passa fome e morre pela cura da religião (em Generation Q há o reconciliar de uma lésbica com deus nos bancos de uma igreja. Amém ao dízimo!). Enquanto alguns lutam pela conquista do casamento gay (não estou dizendo que isso não é importante), a maioria ainda diria Dane-se o casamento, eu só quero voltar pra casa sem morrer.

Queremos o poder de compra e o capitalismo sabe, Desejo é lucro. Basta acessar uma loja virtual pra ver a bandeira arco-íris estampada nos mais diversos produtos. O preço absurdo. E geral compra, afinal, Tenha Orgulho de ser quem você é.

O Doritos está tão preocupado com a causa que até lançou o Doritos Rainbow. Que lindo! Viva a liberdade. Seja o pink money, o green money, enfim, as causas sociais dão as melhores mercadorias.

Em tudo há classe. Sem intersecção entre movimentos, enquanto não percebermos que o inimigo em comum é a droga do sistema, continuaremos viciados, alimentando os gigantes. Uma saída? Não sei; mas sei que precisamos romper com a forma, quiçá por meio do consumo consciente, do olhar além, do questionar e desvelar a violência anterior a violência que a grande mídia finge combater.

Enquanto o capitalismo possuir a coroa e o cajado, poder dizer Eu sou lésbica continuará sendo um privilégio pra quem pode bancar. No universo paralelo da mesma realidade, Se você não tem poder aquisitivo e não se encaixa no roll da fama LGBTQIA+, por favor, continue no armário ou morrerá.

Texto publicado no instagram @alinhavotextual em 16 de junho.

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Suélen Dominguês
Maria do Ingá

Contra a violência do mundo, a violência da palavra.