Maria da Lapa

Ana Favorin
Maria do Ingá
Published in
3 min readJan 15, 2021
Colagem da autora

Eu sabia que essa seria uma história difícil de contar. Maria é uma dessas coisas lisas, profundas, roliças. Escapa das mãos, da narrativa, sai das linhas e se arrisca do lado de fora de bordas. Olhando assim, ninguém diz. Só eu. Conheci seu Manel há muitos anos, eu era ainda criança e me mudei pra Lapa, meus pais abriram um boteco. Lá em cima já moravam os dois. Manel e Maria. O casal de portugueses que parecia pertencer ao bairro, ser parte dele, tanto quanto os arcos. Maria ficava na sacada o dia todo, tricotava e cantava o Fado. Eu era meio criança, não entendia, mas toda vez que ela cantava, meu peito ficava pequenininho, apertava.

Eram casados há tantos anos quanto eu tinha, uns quinze. Seu Manel era normal, preenchia todos os requisitos de marido, era forte, bravo e, desconfio, violento. Quando chegava do trabalho, Manel entrava primeiro no bar, depois em casa. Maria sempre vinha na sacada, olhava pra baixo e gritava: “Manel, vem jantar, homem!”. Ele bebia a última cachaça e ia. “Ela me ama.”, confessou-me tantas vezes.

O bar ia bem. Eu chegava da escola, almoçava ali mesmo, atrás do balcão, ouvindo toda a conversa de bar, toda a conversa de homem. “Não é gostosa aquela ali, menino?”, perguntavam. Eu abanava a cabeça, concordava. A mãe lá na cozinha, com o avental laranja e o cabelo cheirando a óleo. Eu passava as tardes e parte das noites lavando os copos e limpando a mesa pros mesmos homens, incluindo seu Manel. Quando ele chegava, eu corria servir a cachaça de todo dia, a porção de torresmos e embalava um suspiro cor de rosa. O doce era pra Maria.

Uma vez Maria tricotou um pulôver todo azul pra mim. E eu fiquei pensando que era um pulôver triste. Eu ainda não conhecia Van Gogh, mas sabia que a linha azul do pulôver era cheia do fado que Maria cantava. Me entregou num pacote que cheirava almíscar, era meu aniversário. “Tu vais ficar quentinho no inverno.” Disse com os dentes fininhos, todos colados uns nos outros, coisa bonita de ver. No mesmo dia, aconselhou que eu não andasse com esses trombadinhas da Lapa, a molecada que cheirava cola e pichava muro. Toda semana pichavam o bar, a gente pintava. Maria se via louca quando eles vinham vindo, a rua inteira já conhecia bem os meninos. As senhoras seguravam as bolsas, os homens já diziam “passa fora” e eu olhava, pensando que eram meio gente, meio bicho. Depois é que fui ver que todo mundo é meio bicho.

Teve uma vez que picharam lá na frente “Manel trai Maria de noite e de dia”. De noite não podia ser, estava sempre ali no bar, ali não tinha mulher. Mas de dia era mesmo capaz, lá na fábrica. Naquele dia, nos próximos três, Manel não deu as caras no bar. Maria ficou uma semana sem cantar o fado, o silêncio era mais melancólico que a canção.

Pintamos o muro. Maria voltou a cantar na sacada. Manel voltou a secar nossas garrafas de cachaça.

Uma noite, era jogo do Brasil, o bar estava cheio. Manel chegou, sentou no canto, fez assim com a mão e pediu a cachaça com torresmo. Servi a Cachaça e pedi pra mãe preparar o torresmo na cozinha. O jogo não tava tão bom, mas fiquei ali em frente a TV, olhando tudo acontecer tão perto de nós. Esqueci do mundo que cercava meus quase dezesseis anos.

De repente lembrei do bar, me achei, de novo, entre bafos de cerveja e cachaça. Senti o cheiro de cigarro e torresmo. O torresmo! Corri pra cozinha. Parei na porta. Estático. Minha mãe sentada no balcão, pernas abertas, a cara de Manel entre elas. O torresmo pronto no fogão. Tapava a boca com a própria mão, ninguém ouvia com os berros do jogo. Não fui visto.

Voltei para o balcão. Vi o Brasil perder. Manel pedir o suspiro. Maria gritar “Manel, vem jantar, homem!”. Ele foi. Maria cantou o fado. E eu chorei.

No outro dia, Manel não veio. A mãe ficou triste com a notícia no jornal. Os meninos não picharam o bar, em respeito. Maria foi pra sacada, cantar o fado. Meu coração apertou mais que de costume. E ficou pequenininho dentro do pulôver azul.

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