Massa amórfica

Luigi Ricciardi
Maria do Ingá
Published in
7 min readNov 22, 2020
Unsplash

Dos acontecimentos daquele dia, poucas imagens restaram. A boca do Raul afundando e seus dentes saltando era a primeira. Cheguei a sonhar repetidas vezes com ela, como se eu estivesse vendo um gif eterno. A segunda foi a voadora que o Carlos deu, fazendo nosso rival cair no chão de onde nunca mais se levantaria. E os meninos com os caibros nas mãos. É isso, ficaram apenas essas. O resto é tudo confuso, mas ainda escuto os gritos. Do Raul, dos meninos, das vizinhas que vieram socorrer quando já era tarde demais.

Evito passar por aquela quadra. Quando vou visitar meus pais, prefiro fazer um caminho diferente, mesmo que mais longo. Nunca mais vi a casa da Dona Benedita, nem sei se ainda está viva. Minha família não toca no assunto. Era uma velha gentil. Como eu estava sempre por ali, e ela era muito ocupada lavando roupa pra fora, pedia sempre pra que eu fosse na vendinha buscar alguma coisa e me dava um trocado para um doce. A Dona Benedita foi a primeira a chegar naquela manhã trágica.

Também nunca mais vi o parquinho. Não sei se ainda está de pé, se alguém o usa, se está descuidado e cheio de mato ou se já não existe. A maioria das nossas brincadeiras se dava entre os alambrados daquele lugar. Não exatamente nos brinquedos, porque já passávamos um pouco da idade. Era uma espécie de refúgio, um lugar só nosso, sem intervenção adulta. Foi na frente do parquinho que tudo aconteceu.

Era doze de janeiro de noventa e quatro. Tínhamos, quase todos, doze anos de idade. Estávamos de férias e íamos para a sexta série. No final daquele ano, fiquei de recuperação e só não reprovei por conta do conselho de classe. Foi a única vez que fiquei de recuperação em toda a minha vida escolar, nem na faculdade peguei exame. Faz sentido, aquele ano foi um desastre.

A morte do Senna foi dolorida. O tetra campeonato veio de forma amarga. Naquela copa, a cada bola na trave uma imagem vinha na minha cabeça. O taco de beisebol na cara do Raul. O primeiro golpe foi meu. A bola é resistente à trave, a cara do meu amigo não era resistente ao taco. Quanto ao Senna, vê-lo desacordado no cockpit me fez lembrar do Raul desacordado ao lado do meio-fio. Mas ele não tinha capacete, sua cara já estava amassada junto ao asfalto.

Enfim, era janeiro. Eu me lembro bem da data porque, minutos antes do acontecido, o Raul tinha dito: hoje faz um ano que eu estou aqui nesse bairro de merda e tendo que viver com uns bostas que nem vocês, tudo mulherzinha do caralho, ninguém aguenta cinco minutos de porrada comigo. Era verdade, ninguém se metia a besta com ele. Era mais forte e mais corajoso que nós todos. Sua palavra era ordem em meio aos moleques.

Muitas vezes, quando nos reuníamos, desejávamos que ele não aparecesse. O clima era mais leve quando ele não estava lá. Mas, mesmo nos detestando, ele aparecia. Na maioria das vezes, brincava com a gente sem prepotência nem ameaça. Nos ajudava a fazer o cerol para a linha das pipas, consertava a bola de capotão, jogava de goleiro no campo ao lado do parquinho e, quando nos despíamos do complexo de adultos mirins, nos girava no gira-gira do parquinho para sermos novamente crianças.

Porém, os dias ruins com Raul eram de uma escala absoluta. Cuspia-nos na cara, gritava impropérios, dava-nos rasteiras e inúmeros socos, xingava nossas mães. Era um inferno, mas poderia piorar. Naquela idade, nos descobríamos sexualmente. O parquinho não tinha postes de luz e, quando já estava praticamente escuro, nos masturbávamos coletivamente. Tentávamos ver quem ejaculava mais longe e sempre comparávamos tamanho e quantidade de pelos, coisas de moleques bobos.

Em um final de tarde, quando alguém propôs que fizéssemos isso de novo, Raul se transformou no diabo e obrigou, com uma faca, um menino a fazer sexo oral nele. Aquilo nos chocou. Pensamos em fazer algo, mas ninguém tinha peito para o Raul, mais dotado do que nós em todos os sentidos. Obrigou todo mundo a assistir. No fim, saiu feliz e saciado. Nos fez brincar de pega-pega. O menino ficou, em prantos, junto ao alambrado. Raul não deixou ninguém ir embora.

Tempos depois descobrimos que não era a primeira vez que ele fazia aquilo. Tinha obrigado outros meninos quando ia visitá-los e os pais não estavam em casa. Ouvimos histórias que ele tinha feito isso com meninas também, mas não tínhamos provas. Imaginamos que a Manoela fora uma de suas vítimas. Ela meio que fazia parte do nosso grupo, se identificava mais com os meninos do que com as meninas. Brincava com a gente. Meses depois de o Raul chegar, ela parou de sair com a gente e não falou mais com ninguém.

O que me surpreendia, na época, era que Raul tinha pais evangélicos. Iam aos cultos todos os domingos. Quando víamos um rapaz de terno e bíblia debaixo do braço, não conseguíamos crer que se tratava de Raul. Passava um ar quase respeitável. Como podia ser monstruoso daquele jeito e ainda ir à igreja? Hoje eu entendo muito bem essa relação.

Meus pais já tinham me proibido de andar com aqueles meninos. Não fazia muito tempo que Raul quebrara meu nariz em uma briga por conta de times de futebol. Precisei faltar à escola por uma semana. Os meninos todos me visitaram, menos ele. Quando voltei ao grupo, agiu como se nada tivesse acontecido. Soltamos pipa naquele dia.

No dia anterior ao fatídico acontecimento, Raul me escolheu para saciar seus desejos sexuais. Eu relutei e apanhei. Com o olho roxo, precisei fazer o que ele queria. Humilhado, fui pra casa correndo mesmo com os gritos de Raul, mandando eu ficar ali no parquinho. Corri muito, ao menos isso eu fazia melhor do que ele, correr. Quase apanhei novamente dos meus pais, que me proibiram de encontrar aquele menino de novo.

Enfim, doze de janeiro. Acordei cedo, tomei café e fingi ler um livro. Minha mãe ficou feliz. Disse-me que iria ao centro da cidade e me convidou para ir junto. Eu sempre gostei dessas saídas com ela porque, depois de ela passar no banco e pagar as contas, ela me comprava um cachorro-quente com bastante maionese. Era um prêmio que me dava por suportar aquela via-crúcis de contas e dívidas. Mesmo adorando, recusei. Disse que queria terminar o livro. Ela estranhou, mas me deixou ficar.

Eu tive a chance de sair do bairro e evitar aquilo tudo. Mas naquele momento eu não sabia. Isso não evita a culpa que sinto e que nunca vai desaparecer. Tão logo minha mãe pegou o ônibus, guardei o livro, peguei o taco de beisebol que meu pai tinha me dado de presente e subi a rua rumo ao parquinho. Como estávamos de férias, todos os meninos estavam lá.

Pareceu premeditado, mas não foi. Queria apenas dar um susto. Pareceu planejado em conjunto, mas não foi. Os caibros que estavam ali perto eram sobras de uma demolição. O que aconteceu foi que surpreendi Raul pelas costas. Ele falava mal de mim, me chamava de maricas, falava que fazia um ano que ele estava ali e éramos uns merdas. Disse que eu gostava daquilo que nem Manoela, que se afastar do grupo era só ceninha. Foi quando eu dei o primeiro golpe, nas costas.

Raul se virou. O golpe tinha sido fraco. Os olhos dele acenderam, vermelhos, como um diabo desenjaulado. Por um minuto, achei que ele fosse se jogar sobre mim, mas usou apenas palavras. Já não me lembro dos xingamentos, mas a imagem dele cuspindo e gritando foi o gatilho para que eu reagisse. O primeiro golpe foi na boca, que pareceu ter afundado enquanto dentes voavam para fora. O segundo, com ele já tonto, foi na nuca. Foi assim que ele caiu a primeira vez.

Levantou-se. Carlos então deu a voadora. Ele caiu novamente. E os meninos pegaram à mão a primeira coisa que viram. Os caibros. Foram vários golpes. Gritávamos de ódio. Raul tentou se defender, mas não conseguiu. Devíamos ser sete ou oito, não me lembro exatamente. De repente tudo escureceu e sofri um apagão. Só me lembro de, quando voltei à consciência, ver o que tinha sido a cabeça de Raul colada no asfalto, uma massa de cabelos, couro e sangue. Acho que foi ali que desmaiei.

Não sei como foi o enterro, não sei o que aconteceu depois, de verdade. Não sei o que aconteceu nos tribunais, sei que meus pais não foram presos. Ainda é confuso e eu não pretendo ficar desenterrando tudo. Meus pais não falam, eu não falo. Fui morar com minha madrinha depois da tragédia. Aos dezoito anos mudei de cidade e me distanciei ainda mais de tudo.

Encontrei o Carlos já adulto em um café. Trocamos um cumprimento tímido e seguimos a vida. Ele saiu pela porta e eu derrubei o café sobre a mesa. A garçonete perguntou se eu estava bem. Como podia alguma vez estar bem? Estar bem seria ignorar os fatos. Eu ignoro os desdobramentos, não os fatos. Quando me aproximo daquela cena, de alguma forma, vou mais fundo nesse buraco. Algumas coisas não podem voltar à tona.

Fiquei meses sob acompanhamento médico. Acordava gritando todas as noites. Às vezes ainda acordo. Tenho quase quarenta anos e Raul continua a fazer um inferno em minha vida. Não o culpo. Éramos crianças, embora isso não seja desculpa. Quando vejo programas policiais, sinto-me na pele do bandido e torço para a polícia me prender. Já estourei meus próprios miolos muitas vezes em pensamento. Nos sonhos, eu me transformo na massa amórfica que foi a cabeça de Raul.

--

--

Luigi Ricciardi
Maria do Ingá

Professor de Francês e Literatura Brasileira. Mantém o blog e o canal “Acrópole Revisitada”. Autor do livro “Os passos vermelhos de John”.