Não foi doce o final da minha infância

Estela Lacerda
Maria do Ingá
Published in
2 min readSep 12, 2020
Por Annelies Visser/Liesje

duas ruas compridas
de terra firme e vermelha
mas com pedras redondas
que me faziam deslizar de chinelos rider

de cada lado daquela comprideza
simpáticas janelas brancas
se destacavam nas casas
de tijolos laranjas à mostra

nas pequenas áreas das casas
cadeiras se misturavam
às conversas de fim de tarde
junto aos bichos e plantas
e redes onde cabiam sempre mais um

aquelas duas ruas compridas
seriam inseparáveis
se não fosse o canteiro de primaveras
tão antigas quanto os traços da minha vó
moradora numa daquelas casinhas de janelas brancas

não havia muros
era uma liberdade pura e simples
eu transitava de um quintal pro outro
via jaca esborrachada no chão
jabuticaba brilhando no pé
manga rosa cheirando doce

foi lá que descobri que tem bicho que rola bosta no barro
foi lá que coloquei aranhas pra brigar num garrafão de vinho
foi lá que descobri que existe louva-deus
bicho nada parecido com o povo da igreja
foi lá que vi a primeira coruja
estática observando o tempo passar
foi lá que uma sanguessuga me sugou
um tanto de vida ali na beira do rio
foi lá que me apaixonei pela primeira vez
por um garoto que já nem lembro o nome

até que um dia veio a cana-de-açúcar
ocupando cada pedaço de terra e sonho
e hoje aquelas duas ruas compridas de terra
separadas (ou unidas?) pelas primaveras
iluminadas pelas janelas brancas
são fotos de qualidade ruim
de um passado já distante
no desgastado álbum de família

lembro da minha mãe dizendo
que a cana-de-açúcar fazia o doce de tudo
não sei se era uma mentira dessas que os adultos contam
mas sei: a cana-de-açúcar
não fez doce o final da minha infância.

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Estela Lacerda
Maria do Ingá

escritora • mediadora do #LeiaMulheres • mestra em estudos literários • gerente de conteúdo