No mercado com Dona Maria

Ana Favorin
Maria do Ingá
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2 min readOct 5, 2021

Já faz uns dois meses que eu encontrei Dona Maria no mercado. Os pés martelam na minha cabeça com seus chinelos de correias azuizinhas igual à porta da geladeira da casa da minha vó quando eu era criança. A geladeira, a mesa, as cadeiras, o armário, tudo azulzinho, azul fusca. Podia ser minha vó a Dona Maria.

Podia ser.

Compra uma cesta básica pra mim? A luz fria do mercado de gente rica me suspendeu uns dois segundos ou muito mais. Eu não podia. Eu nem cabia naquele espaço com aquelas mulheres cheias de botox e unhas recém-feitas no salão do térreo.

Não tenho. A resposta sussuro saiu sem querer sair, apertando as bordas da boca, até finalmente virar palavra.

Aí ela saiu andando, um passo miúdo arrastando os chinelos entre mexericas e blueberries.

Meu peito foi apertando e a garganta ardendo como se eu tivesse comido camarão. A vista embaçou e o arrastar dos chinelos da dona Maria passeou dentro da minha cabeça por mais ou menos 30 segundos.

Corri atrás dela uns 10 passos que pareceram o mercado inteiro com suas laranjas perfeitamente enfileiradas. Tentei ajudar de um jeito, de outro.

Me compra um gás então?

100 reais.

Eu não posso.

Sentia os olhares em volta pregados em nós, na nossa conversa. A minha habilidade limitada em fazer as contas do mês.

Onde a Senhora mora?

Falou o endereço certinho, com número e cep. Rua Três lagoas, 141. Tudinho. Anotei na cabeça.

Dona Maria. Uma nódoa no mercado tão limpo, tão branco, tão fino.

No fim do momento turbulento e arrastado, duas mulheres se juntaram a mim. Dividimos a cesta que seria entregue na casa de Dona Maria. A casa que imaginei azul, azul casa de vó e correia de chinelo.

Repeti o endereço na minha cabeça como uma criança que não pode correr o risco de esquecer. Escrevi no verso do ticket do mercado. Não precisava, porque ainda agora… a rua, o número e a cor da casa se arrastam pela minha memória. Azulzinha.

Vai em casa, fia. Fazer uma visita, tomar um café que agora vai ter.

Vou, Dona Maria. Cuidado na volta.

Desviava os olhos de mim pra falar de si. Não tinha telefone, nem filhos, apenas um irmão. E o papel amassado na minha mão com o endereço que não preciso consultar.

Se eu for, será que tem café?

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