Nunca prometa escrever uma crônica ao jornal

Mariana Gil
Maria do Ingá
Published in
2 min readNov 5, 2020

“Talvez de agora em diante eu não mais escreva, e apenas aprofunde em mim a vida.” Clarice Lispector

Irene prometeu à edição do jornal local que escreveria uma crônica para a próxima edição. Quando fez a promessa, não pensou que seria tão difícil — inclusive acreditou que seria uma boa ideia. No mesmo dia, foi para casa tranquila, pois tinha tempo de sobra para criar sua história.
Um dia se passou, e outro, mais outro. Uma semana, duas e três. De repente faltavam apenas quatro dias para a entrega do texto final. Quatro dias, repetiu Irene olhando para o arquivo ainda em branco na tela do computador.
Enquanto nada lhe surgia, saiu para andar pelo bairro. Observou as placas dos carros à procura de palavras úteis para guiar sua crônica. Contou três: um “bem”, um “mal” e um “par” (porque “paz” já seria pedir demais).
Parou na padaria, comprou um chiclete e conversou com a Clarice — dona do lugar. Clarice disse que aconteceu um assalto na venda da esquina no dia anterior. Levaram todos os cigarros e dois isqueiros. Vício maldito, a dona exclamou. Irene concordou com a cabeça, mas no seu interior achou graça por não terem levado dinheiro. Disse adeus a Clarice, pegou seu chiclete e abriu a embalagem enquanto caminhava lentamente de volta para casa. Dentro havia um adesivo de tatuagem que dizia “gratidão”. Revirou os olhos e jogou a palavra no lixo mais próximo. Era uma tarde quente e seca de julho.
Chegou em casa e encontrou o mesmo arquivo em branco parado no computador. Tentou compor alguma coisa com as palavras que vira nas placas, mas tudo que conseguiu foi uma frase de efeito ruim. “O bem e o mal formam um belo par”. Deu risada, mas o que queria mesmo era chorar. Por que diabos tinha feito aquela promessa?
Para não entregar um arquivo em branco, escreveu: “nunca prometa escrever uma crônica ao jornal”. Salvou, escreveu seu nome e enviou assim mesmo.

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