Pouco sei sobre o meu pai

Estela Lacerda
Maria do Ingá
Published in
3 min readJun 19, 2021
Por William Santiago
Por William Santiago

A solidão que me acompanha é maior do que eu consigo compreender. Enquanto almoçava sem companhia, nesse dia dos pais, todo alimento descia pela minha garganta como se estivesse envolto de angústia.

No restaurante, procurei olhar em volta, tentando captar algo que conseguisse colorir o meu dia cinzento como os restos de uma guerra. Mas, por ser cedo, não havia muito o que ver.

Nunca consegui almoçar tarde, é costume. Na casa onde vivi minha infância, o cheiro de comida invadia todos os cômodos pontualmente às 11h, junto com o som distante do radinho de pilha da minha mãe, que só silenciava quando ela, limpando as mãos no avental, gritava que o almoço estava na mesa.

Não muito distantes de mim, havia pais com seus filhos em duas mesas distintas. Um pai sério, resoluto, a careca brilhante como as louças de casamento da minha mãe, a postura rígida, a seriedade no jeito de se portar e no jeito de olhar, como se tivesse um “v” nas sobrancelhas.

O outro era todo short e camisa colorida, com os cabelos desgrenhados, o sorriso na boca tão brilhante quanto aquele dente de ouro do moço que eu vejo todo dia quando pego o ônibus rumo ao trabalho.

Depois de olhar tanto para os dois homens, como se eles não pudessem me ver, pensei no meu pai. Eu realmente o enxergava? Algum dia fui capaz de observá-lo tão atentamente assim, desse jeito que olho desconhecidos?

Ele é um estranho para mim, e eu uma estranha pra ele. Não nos conhecemos. Até parece que não nos pertencemos, que não temos o mesmo sobrenome, o mesmo sangue, nem as mesmas marcas de expressão no rosto.

Percebi que não sei se meu pai gostava ou não de gente que falava demais, de gente que sabia demais, com convicções quase irrevogáveis, ou se preferia quem mudava de opinião conforme a situação.

Não sei se gostava mais de frio ou calor, se gostava da sensação quentinha do tapete felpudo no chão, ou se preferia o toque liso do piso embaixo dos pés, geladinho.

Não sei se ele chorava em filme ou se escondia a lágrima no cantinho do olho, no compartimento para o qual a gente desloca a lágrima quando não quer demonstrar emoção. Também não sei quais foram suas últimas palavras antes de partir.

Eu sei tão pouco, é verdade, mas, ao mesmo tempo, é tão suficiente! Sei, por exemplo, que ele trocava cartas com a minha mãe, escrevia bonito e com uma letra que eu sempre quis imitar — e nunca consegui.

Sei que ele gostava de caqui e de shorts com a cor que tem o nome dessa fruta e que ele adorava comer doce tanto quanto adorava tomar água fresquinha de filtro de barro.

Sei que era dos silêncios, assim como eu quando não sei o que dizer para alguém com quem tenho pouca intimidade, mas sempre foi um bom ouvinte, pois mesmo com sua mudez, permanecia atento com suas covinhas, os dedos largos, o cabelo crespo, os pelos do peito saindo pra fora da camisa polo desbotada.

Acho até que esse silêncio nos unia! Esse silêncio não nos diferenciava porque não havia diálogo que nos fizesse destoantes. Na nossa mudez, nos almoços de domingo e feriados nacionais, a tv ligada num canal qualquer, nós éramos — ainda somos? — iguais: dois estranhos, lado a lado, observando a vida devagarinho.

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Estela Lacerda
Maria do Ingá

escritora • mediadora do #LeiaMulheres • mestra em estudos literários • gerente de conteúdo