Roland Straller

Prato principal

Suélen Dominguês
Maria do Ingá
Published in
3 min readSep 18, 2020

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Havia um porco morto em cima da mesa. Cinco cadeiras e dez pés inquietos com a oração de jesus, abençoe o nosso alimento. Tenho sufoco da cozinha, do cadáver, do céu cinza. O mormaço seco que gorfa o mundo e arde nos olhos, estômago, peito. E a garganta engasga sem cuspe para engolir. Vozes que chegam cheias de alegria entediada, parece família. Mas precisa chover. Esse tempo trinca língua, cerra mandíbula e arranca respiração.

A beirada da toalha xadrez vermelho e branco se contorce entre meus dedos num me socorre e me livre daqui. Não lembro como fui me agarrar e aperto ainda mais, e mais, bem forte. Será que não percebem a presença do infarto? O vento que chega vem de garupa na fumaça, tosses de cinzeiro.

Veja bem, o ser humano é ridículo. Essa marionete de pernas, umbigo, braços, pescoço e nariz. O Mau cabe em si. Imagina uma planta longa naquele canto do vazio; dava um pouco de vida pro ambiente, bem que dava. Pedaço por pedaço, o porco desfeito. Mas foi um porco feliz, criado em chiqueiro e com lavagem. Quem matou também come.

Outro dia assisti um documentário bufando de raiva, um tal estudo das emoções: a tristeza, a alegria. Igual big brother os porcos são monitorados vinte e quatro horas por dia. O entrevistador, Esse estudo é para melhorar a qualidade de vida dos animais e proporcionar o abate humanitário? E o entrevistado, Mas também tem a ver com o mercado, quanto mais a gente souber sobre os sentimentos dos porcos, menos animais perderemos, mais carne de qualidade teremos e mais lucro.

Pode ser que tudo seja mercado. Enquanto mastigam negociam a atenção uns dos outros. A mãe governa a instituição, dona de todos. E o olhar rude passa de prato em prato, de rosto em rosto pra checar se estão comendo e pra ninguém sair falando passei fome, oras, onde come um, come cinco, e que Deus venha ao nosso socorro e traga fartura.

Será que o porco tinha família? Será que a mãe chorou sua morte? Existe céu para os animais? Se existe, é o inferno. Se fosse eu, nua, temperada no sal grosso, com rodelas de cebola, limão para amaciar, alho, azeite, pimenta-do-reino, fogo de duzentos e sessenta graus, tostada, com a maçã na boca, a farofa de pimentão no estômago aberto, esticada dentro da bandeja. O pai reclama, Que calor. E o filho acrescenta, Está péssimo até para a soja.

Embora esteja limpa, o que se nota nos móveis recém-lustrados e no ladrilho alvejado, a casa é um chiqueiro. Só aparenta. No fundo não passa de um aperto acumulado de lixos e sujeiras. Ainda mais pro fundo, fede. Não sem antes reconhecer o tanto de esforço e de talento que a mãe bota para manter as coisas no lugar. De repente, sumi com a fome. Não podia deixar o instinto materno me pegar no pulo, mães sabem tudo sobre os filhos — não essa que não viu e preferiu não ver.

A previsão é de catástrofe. Do calor que passa para as queimadas ninguém tem uma opinião certa e formada, mas pai e filho concordam que a poluição chega para todos, o vento traz do Amazonas pra cá e pra lá e espalha. É aí que começa a incomodar. E os animais que estão morrendo? A cunhada, É uma pouca vergonha, coitadinhos. Come o porco, porém, tem amor e consciência que isso não é certo. Se essa moda pega! Ô bicho chato é o tal do vegano! Não comer animais, vê se pode, quer se aparecer pendura uma melancia no pescoço e pula do telhado.

Quando a gente precisa, o tempo não estica, está de brincadeira comigo. Ia fazer uma feijoada, depois resolveu assar inteiro — a mãe insiste, Alguém vai comer o focinho, as orelhas e os pés? O pai rói o tutano do osso da coxa. O filho já soltou o botão da calça, bate na barriga e engole o refluxo. A cunhada está arrependida e satisfeita. Então nosso olhar se encontra. Eu e ela. Dessa vez, não encolho, tenho a resposta na ponta da língua, tremendo, venha, venha

- Ei, então, o que você vai fazer no ano que vem?

- Anh, eu?! Bem, ainda não sei ou tanto faz.

Os cachorros latindo pelos ossos. A mãe arrota.

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Suélen Dominguês
Maria do Ingá

Contra a violência do mundo, a violência da palavra.