Quando fichei Bosi à mão

Ana Favorin
Maria do Ingá
Published in
2 min readApr 7, 2021

Em algum ano da graduação em Letras, não me lembro qual, aconteceu o inevitável. Um livro de Alfredo Bosi, desses gordos, densos, caiu no meu colo na disciplina de Poesia Brasileira I ou II.

Em vez da discussão de um capítulo do livro a proposta era outra: fichar o livro completinho (até aí tudo bem!) À MÃO! A turma inteira riu. Compramos aquelas fichinhas antigas na papelaria, sabe?

A capa vermelha era convite, provocação. Mas parece que eu tinha pegado birra dessa coisa de ter que fichar à mão, escrevendo naqueles papeizinhos pequenos, com linhas de caderno de caligrafia. Humilhante!

Tentei desgostar. Detestar. Mas as frases pontuais, claríssimas e complexas me prenderam logo no início. E eu, que tinha combinado comigo de fazer o fichamento porcamente ao passo em que lia, fui me esquecendo das anotações, do tal fichamento, da birra toda. Fui entendendo que a imagem é uma experiência anterior à palavra.

E aí, eu olhando o livro vermelho dias e dias, dando conta de que olhar o livro não era sobre o livro, mas sobre algo entre mim e a palavra do livro, a capa do livro, o corpo do livro. O intervalo.

Mas foi esbarrando na ideia de Poesia Resistência que, enfim, esqueci de vez o fichamento, o curso de letras, a obrigação. Rabisquei o livro, liguei para amigas, marquei cafés e compartilhei a ideia pulsante de que a poesia resiste. À falsa ordem, à barbárie e ao caos.

Bosi alimentou no meu coração a ideia de que a poesia poderia, enfim, ser capaz delinear horizontes, impedir o apagamento de memórias e desafiar o aparente estado natural das coisas.

Entreguei, afinal, aos 45 do segundo tempo, o fichamento meio esculhambado. Mas o livro bem lido continua rabiscado na minha estante. Passei meses com o texto fervilhando, depois o encontrei de novo no processo seletivo do mestrado, em artigos, cheguei a discordar dele, torcer o nariz em alguns trechos, mas aquela primeira impressão…

Hoje, o homem da Poesia Resistência nos deixou. Em um tempo que em que a falsa ordem parece ter descido como um manto sobre um povo cataléptico que não sabe mais ler poesia e que não entende que ver é mais que perceber a aparência de um objeto.

É o intervalo.

Acho que os anos me enrijeceram um pouco e eu já não sei, Bosi, se a lucidez nunca matou a arte.

Revirei as gavetas, encontrei o fichamento guardado. Não senti mais raiva por tê-lo escrito à mão. Uma espécie esquisita de carinho subiu pelo estômago até virar uma bola na minha garganta. Peguei o livro.

Lá, todas as anotações dos meus 19 anos. A paixão, a descoberta. Uma lágrima quente borrou o grifo.

Obrigada, Bosi.

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