Síndrome de Humpert Humpert

Thays Pretti
Maria do Ingá
Published in
6 min readMay 12, 2021

O assunto que eu trago hoje é algo que venho elaborando há algum tempo. Já conversei sobre isso com algumas amigas escritoras — discretamente, em voz baixa, entre risos de confirmação que servem de aval à minha tese. Afinal, não há quem não tenha esbarrado com um desses, seja na vida real, seja como personagem. Mas deixemos os da vida real à parte, porque são de responsabilidade de seus analistas. Tratemos aqui dos personagens. Vocês os conhecem de romances, de contos, de poemas. Dos textos desavergonhados daquele seu colega de faculdade. Tenho certeza que você conhece esses personagens.

Eles são homens, geralmente entre os 35 — quando precoces — e os 50 ou 55. Geralmente saídos de um relacionamento longo fracassado (às vezes ainda em um) ou que acumulam certos fracassos românticos repetidos, o que faz com que se sintam miseráveis. Podem ter filhos ou não. Muitas vezes moram sozinhos em um apartamento que exala testosterona. Raramente moram numa casa ou têm animais de estimação. Poucas vezes cozinham. Frequentemente bebem. Às vezes pagam por sexo.

Eles se percebem envelhecendo, notam o corpo perdendo a força e o vigor, às vezes lutam contra isso agindo como jovens, às vezes não. O fato é que sentem o passar dos anos pesando em suas costas, começam a temer a perda da virilidade e se desesperam com a crueldade de um mundo que permite que a derrocada de sua masculinidade heroica ocorra na mais completa solidão.

E eis que nesse momento trágico de suas vidas surge ela: a ninfeta. Uma adolescente ou, para os escritores que preferem ser politicamente corretos, uma jovem recém-saída da adolescência, exuberante, cheia de vitalidade e tesão, com as ditas “carnes firmes”, loira ou ruiva, quase invariavelmente com sardas. Hedonista, ela gosta de sexo e bebida, às vezes drogas. Não tem tabus, veste-se com roupas minúsculas e provocantes, mas que de certa forma remetem à infância. Às vezes é acadêmica de algum curso da área de Humanas. Ou é uma leitora voraz e inteligentíssima, uma fotógrafa sensível. Pode ser uma junkie. Dificilmente é caixa de supermercado ou trabalha na conveniência de um posto de gasolina: tem que haver algo em sua construção que aparte essa garota do prosaico. E ela, essa angel da Victoria’s Secret, que tem toda uma vida pela frente e que poderia ter qualquer garoto ou garota a seus pés; ela, belíssima, divertida, provocante, com uma penugem cobrindo seu sexo (ou sua bocetinha rosada, no caso de escritores mais despudorados), se apaixona por esse homem de meia-idade, meia-bomba, fracassado, muitas vezes mal-humorado, com baixa autoestima e um sex-appeal semelhante ao de uma ervilha cozida.

(Ok, dizer que ela é perfeita pode ser um exagero da minha parte. Às vezes os escritores indulgem a essa lolita um pequeno defeito, como ter os dentes da frente separados demais — defeito esse devidamente fetichizado, como o restante das características físicas dessa menina).

Ela é a aventura que esse homem precisava em sua vida e que — olha só?! — surgiu no momento mais crítico de sua derrocada enquanto o macho alfa que ele acreditava ser.

O problema dessa personagem, dessa lolita, é que ela não existe na vida real.

Pronto, o texto acaba aqui, voltemos a cuidar de nossas plantas.

Mentira. O texto continua.

Essa lolita é uma construção e um reflexo do desejo masculino. Ela existe como uma espécie de símbolo do momento em que o homem (de 35, 40, 55 anos) se percebe humano — mas sem querer se assumir humano. Afinal, ele passou tanto tempo de sua vida acreditando ser Deus que deve ser mesmo muito chocante se ver falho, fracassado, frágil. Humano. Daí, o escritor cria essa garota para desejar por meio de um personagem — no geral, um alter-ego direto ou indireto — já que ele inconscientemente sabe que ela, caso existisse, não daria a mínima para ele, o escritor. Ou daria, por um curto período, e certamente sem toda essa fúria e paixão. Talvez trocasse com o escritor um ou dois beijinhos, até que ela notasse a carência, a necessidade de controle, a fetichização, ou visse o garoto (ou garota) da mesa ao lado — uma graça — e fosse viver novas experiências.

(O que, aliás, é absolutamente natural quando se acaba de sair da adolescência para a vida adulta — caro escritor, por que tentar alterar a ordem natural das coisas?)

Eu compreendo seu impulso, amigo. Às vezes é bom satisfazer nossos desejos usando a imaginação. Nós, que escrevemos, concordamos que o melhor dos mundos é o mundo que inventamos para sobrepor a este. Eu sei. Mas sabe o que você não precisa fazer? Compartilhar a realização das suas taras com seus leitores.

Nós, enquanto leitores e leitoras, já fomos expostos várias e várias vezes a essa punheta do homem de meia-idade. Já estamos meio cansados (pelo menos nós, leitoras, estamos bem cansadas disso). Sabe por quê? É que, com pequenas variações, é sempre a mesma ninfeta ninfomaníaca (risos) que entra em cena para salvar a vida sexual de um quarentão frustrado. Sempre. Não há nada de novo nessa narrativa, caro autor desejoso por ser inovador e ganhar leitores, reconhecimento, prêmios literários, resenhas elogiosas e menções no Instagram (não necessariamente nessa ordem). Mas se você continua contando sempre uma mesma história da qual só se altera o escritor e o título do livro, que mérito há nisso?

Sabe o que eu quero do seu alter-ego, estimadíssimo colega? Eu quero a dor. Eu quero a dúvida, a frustração. Não quero o orgasmo repetido com a lolita ruiva, eu quero a broxada com uma mulher amada, mas insatisfeita (quem de nós não é?). Eu quero saber o que sente o cara quando se vê envelhecendo e percebe tudo o que acreditou sobre masculinidade ruir — sem nenhuma ninfeta para colocá-lo de volta em sua posição de macho desejável. Eu quero ver o olhar do homem quando descobre que não há setenta virgens esperando do outro lado. Ou quando nota que encontra muito prazer na culinária ou na jardinagem, o que faz que ele se sinta confortável em sua solidão. Eu quero ver o que sente o homem quando aceita que seu vício em masturbação deve-se também às suas dificuldades de socialização — ou seu pouco tempo, ou pouca paciência para relacionamentos. Eu quero saber do cara que é excluído pelos colegas por não aceitar piadinhas machistas. Ou do cara que é isolado por ser o único mega escroto do bando. Eu quero a crise de identidade, eu quero a saudade dos pais. Quero saber como se sente o homem que se arrepende do abandono parental ao ver os filhos crescidos. Eu quero o homem que erra e tenta corrigir, e falha de novo, e levanta. Eu quero o homem que envelhece sozinho, mas percebe que gostaria de ter sido pai. Quer falar de sexo? Fale. Só que sem fetichização: eu quero a lágrima. Eu quero a insegurança, a incerteza. Eu quero a falha.

Estou farta de semideuses:

Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?

A minha sugestão aqui, caro autor, é que liberte a lolita. Sem ela, sem o peso gigantesco de ter que repetidamente conquistar essa mulher inexistente, talvez você permita que seus personagens falem do cansaço e do medo que sentem. Talvez você permita que eles aceitem o suor azedo de suas axilas e virilhas quando chegam de um trabalho extenuante que não permite que façam duas viagens por ano (às vezes nem mesmo uma). Que eles falem da revolta, de seus sonhos partidos. Que eles falem de delicadezas e poesia. E que eles falem de angústias que eu, como mulher, não consigo acessar, porque ficam escondidas por trás dessa repetida conquista de uma ninfeta bela, sensual — e inexistente.

Então, fica aqui o meu apelo: busquem para seus personagens a cura da síndrome de Humpert Humpert. Libertem a Lolita.

#FreeLolita

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