Sofá de dois lugares

Estela Lacerda
Maria do Ingá
Published in
2 min readDec 19, 2020
Por Grace Easton

No começo era bom. Até compramos juntos um sofá maior. Cada mês um de nós pagava uma parcela – eram 12 no total, no cartão de crédito. Só assim os três cabiam na sala, com conforto.

Era uma delícia assistirmos tv até mais tarde. Dividíamos a pipoca, o brigadeiro e os beijos. Alternávamos o colo a cada filme ou episódio de série, quarenta e quatro minutos cada um. Ou brigávamos divertidamente pelas almofadas.

Fui eu quem cheguei por último, o casal já estava formado. Nos conhecemos em um bar, desses lugares que se vendem como gay, mas onde, no fundo, os funcionários são homofóbicos e viram o olho quando dois homens se beijam – o mesmo não acontece quando são duas mulheres.

Me apaixonei pela Marina no primeiro sorriso que ela deu, exatamente quando fomos apresentadas pelo meu amigo Jean. Depois, fiquei hipnotizada quando ela falava mal de diretores de cinema que muita gente ama, como Woody Allen e Tarantino.

O encantamento era tanto que eu mal notava que ao lado havia o Vitor, o companheiro dela. Ele era bonito e muito arrumado. Desses caras grandes, de barba, mas não malhados. Já a Marina era linda e simples. Vestido solto e cabelo sempre secando ao vento, de batom bem vivo na boca e perfume de erva-doce.

O Vitor veio no combo, não tinha opção. Bom mesmo era quando só eu e Marina ficávamos em casa. Cozinhávamos juntas e atirávamos uma moeda pra ver quem ficaria com a louça. Depois, líamos uma pra outra. A noite era mais gostosa com apenas os nossos barulhos, ou nossos silêncios.

No fundo, Vitor tinha ciúme e sonhava com a família perfeita. Nesse plano, eu sobrava, era a pedra no seu sapato caro e bem lustrado. A peça que não encaixava no quebra-cabeça perfeito que devia ser a vida dele.

O relacionamento durou até a última parcela do sofá, quando ele já estava um tanto esgarçado e com umas descosturas. Sem falar em uma ou outra mancha que parece ser pra sempre.

Às vezes, Marina me procura. Chega com os cabelos ainda molhados, seu cheiro de erva-doce e senta no meu pequeno sofá de dois lugares. Nunca a porta de casa se fechou pra ela. Nunca mencionamos o nome Vitor.

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Estela Lacerda
Maria do Ingá

escritora • mediadora do #LeiaMulheres • mestra em estudos literários • gerente de conteúdo