Tateia

Ana Favorin
Maria do Ingá
Published in
2 min readMar 30, 2021

Pega assim a ponta dos teus dedos e desenha meus lábios como se soubesse de repente que os silêncios ali são tantos quantos os disparates e sincericídios. Você suportaria?

No marrom brilhante das íris, bolinhas de gude, curiosas como se descobrissem a volta a todo instante. Criança que tateia o mundo que pende do lado de dentro do meu peito de carne.

Piso leve como que se o passo fosse o primeiro. E é. Descalça como no tempo de antes, sem medo pisar pedra, prego, formigueiro. Como que pronta para subir no pé de goiaba no fundo do quintal da casinha da minha vó, na rua Barroso, Vila Operária, com seu murinho baixo, branquinho, branquinho e seu chão de assoalho, sempre encerado.

E se eu cair?

Afasto o pensamento embirrado do hoje que teima em atravessar meus desejos de menina. Se cair, levanta.

E solta as mãos da bicicleta, os pés do pedal e fecha os olhos. Sem cruzamentos e preferenciais. Ignorando o trânsito, a gravidade, a brevidade, a fragilidade, a linha tênue entre o estar viva e o deixar de ser.

Respira fundo.

E você me olha demorado, sem desconfiar da minha fuga para a criancisse, para o aconchego de um eu muito sabido do mundo e ignorante da morte. Na ponta dos teus dedos, sorriso. Me encontro um pouco mais comigo.

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