Um dois três

Thays Pretti
Maria do Ingá
Published in
2 min readOct 22, 2020

A gente contava um, dois, três e olhava cada um para baixo da sua cama, ao mesmo tempo, vendo se não havia nada. Quase sempre havia pares de tênis, caixa de papelão com brinquedos e montinhos de cadernos, e a gente tinha que olhar um pouco mais para finalmente ter certeza de que, por trás de tudo aquilo, não havia nada. Só então dava pra apagar a luz (invariavelmente ao lado da cama de um dos dois) e começar a murmurar nossa ave-maria-pai-nosso-santo-anjo-do-senhor que não chegaria ao primeiro amém.

Vez ou outra a gente se esquecia da checagem e, logo depois do sanamariamãedideus, um dos dois dizia baixinho: “a gente esqueceu de olhar embaixo da cama”. Num pulo, a luz se acendia e os dois se colocavam a postos — um, dois, três.

Nunca conversamos sobre o que temíamos encontrar. Ou sobre o que faríamos se realmente houvesse algo ali. Apenas seguíamos dia após dia esse mesmo ritual, até que não mais. Nem sei dizer quando foi que parou — talvez quando deixamos de dividir o quarto. Estávamos então muito crescidos pra isso (mas confesso que estar sozinha me dava ainda mais medo das coisas que se escondem embaixo da cama).

Minha proximidade com meu irmão já não é a mesma que eu tinha na infância. A gente é bem diferente e não se fala sempre, mesmo virtualmente. Nossas buscas são diversas e, em alguns assuntos, não poderíamos ser mais opostos. As conversas existem, é claro, mas, sendo os dois meio fechados — cada um a seu modo -, tem várias coisas que um não alcança no outro. Não saber quais são os medos que ele venceu e quais permanecem é só um exemplo disso.

Já eu — eu ainda tenho muitos medos. De bungee jump, de stalker, de quebrar o braço, de pegar carona, de morrer de câncer. De perder amigos, de sentir saudades, de ficar presa num elevador com uma pessoa muito chata ou que solte pum. De ser mal entendida, e de barata. Eu tenho muito medo de barata. Mas aquela qualquer coisa assustadora que mora embaixo da cama e que eu nunca soube bem definir o que é já não me põe calafrios. Talvez ela durma comigo há tanto tempo que eu tenha feito as pazes com ela.

Hoje eu encontro meu irmão na casa da minha mãe, quando a visitamos. Não pergunto quais são seus medos. Não sei se ele também fez as pazes com o que temia encontrar embaixo da cama ou se agora esconde esse medo em outro lugar. Não sei. Mas quando eu olho pra ele eu tenho certeza de que, se um dos dois precisar, a gente para o que estiver fazendo e conta de novo — um, dois, três.

Para meu irmão, Hygor Z.M.

Acervo pessoal

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