Uma brincadeira impossível

Bruno Vicentini
Maria do Ingá
Published in
3 min readFeb 2, 2022

– Aqui deu.

– Aqui também.

– Não, eu me tirei. Sorteia de novo.

Éramos três à mesa, no pior bar da Vila Operária.

Não vou perder tempo descrevendo o lugar, vou só dizer que não foi difícil perceber o erro. O boteco estava às moscas e, tão logo nos sentamos numa mesa qualquer, que ficava na calçada em frente, o proprietário veio nos receber com cardápios na mão e ostentando um sorriso de quem nos houvesse batizado. Parou ao lado da mesa e, como quem trouxesse a boa-nova, nos ofereceu uma torre de chope. Nenhum boteco que se preza serve torre de chope.

Na Galileia, uma antiga tradição diz que quando treze pessoas se sentam juntas à mesa, a primeira a se levantar será a primeira a morrer. Isso começou com um certo cabeludo chamado Jesus, que era bem chegado num tinto. Um dia o pobre rapaz jantou com mais doze amigos e, de cuca cheia, foi o primeiro a sair da mesa pra se aliviar. Depois disso a coisa ficou realmente esquisita pro lado dele. Alguém parou pra reparar no que tinha acontecido, colocou o episódio todo em perspectiva e saiu-se com a superstição. Dada a gravidade do caso, ninguém se sentiu muito inclinado a questionar a crendice, e passaram todos a prestar redobrada atenção, sempre que iam organizar um jantar, ao número exato de comensais.

O que nenhum dos tais Evangelhos conta é que naquela noite, além da ceia, também houve uma revelação de amigo-secreto. O cálice que Jesus ergueu tinha sido presente de Simão, o Zelote. Há quem diga que a traição de Judas não teve nada a ver com moedas de prata. Foi motivada por um par de meias.

– Deu aqui.

– Não, aqui ainda não. Deixa que dessa vez eu sorteio.

Éramos três à mesa, no pior bar da Vila Operária. Não sei dizer de quem partiu a ideia terrível de trocar o boteco de sempre, o respeitável e tranquilo boteco de sempre, por aquela espelunquinha moderna e metida a besta, que servia torre de chope. Niltinho, tremendo gozador, acreditando que a coisa não podia ficar pior, propôs que fizéssemos pra semana uma brincadeira de amigo-secreto. Thiago, o único operariano entre nós (envergonhado, portanto, até o último fio de cabelo), aceitou no mesmo instante, só pra desviar o assunto. Aceitaria qualquer coisa, talvez até uma colonoscopia. Pediu uma caneta pro dono do bar e escreveu nossos nomes num guardanapo, que depois rasgou em três bolinhas.

– Deu.

– Aqui também.

– Porra, finalmente!

No total foram necessários oito sorteios, até que nenhum de nós tirasse o próprio nome. Foi quando eu me levantei e fui ao banheiro.

Na Vila Operária, quando três pessoas se sentam juntas à mesa, a primeira a se levantar não corre risco algum (bom, quer dizer, pelo menos não corre risco maior do que as que ficaram sentadas). No entanto, existe lá outra tradição, parecida, mas diferente, que faz com que os velhinhos sábios do bairro procurem os bares quase sempre em grupos de três: o primeiro a se levantar sobrevive, mas padece de uma revelação.

Foi apenas por conta disso, da tradição velada da Vila Operária, que eu percebi o que era óbvio: um amigo-secreto só é secreto mesmo se envolve no mínimo quatro pessoas. Em três, a brincadeira é impossível, porque a pessoa que você não tirou, ora, foi a que tirou você. Voltei do banheiro me sentindo muito esperto. Meus amigos ainda não tinham se dado conta, mas eu não quis ser o desmancha-prazeres. Tomei então uma medida drástica:

– Eim, esse lugar é muito ruim. Vamos lá pro boteco de sempre?

Funcionou. Bebemos tanto que, no dia seguinte, quando acordei, não me lembrava mais quem viria a ser o meu (agora sim) amigo-secreto.

--

--

Bruno Vicentini
Maria do Ingá

Títulos protestados: 7 Impulsos de medo: 1.106 Sintomas neuróticos: 33 Horas semanais de catequização pela TV: 16