Umas pernas

Ana Favorin
Maria do Ingá
Published in
3 min readSep 1, 2020
Hotel del Salto, Colombia. Fotografia: Michael Mehrhoff

Se pernas podem ser assim carrancudas, como uma tia que rasga com a faca as bolas dos garotos que caem em seu quintal, assim eram as dele. Pernas compridas rasgando com passos firmes os corredores da escola onde lecionava há, pelo menos, trinta anos. Ainda sentia a cabeça esquentando quando o relógio batia 7 e pouco da manhã, perto da aula começar. É raiva que esquenta a cabeça, que faz com que ele aperte assim os dentes e segure muito forte a alça da maleta de couro marrom que ganhou da esposa no primeiro ano de casamento. A vagabunda. Foi embora.

Nada vingava na vida desde que ela bateu a porta. Nada vingava no mundo. Mas a mala era boa, de couro. É caro couro e o salário de professor não era essas coisas. Mas dava bem pra luz, aluguel, água, gás e o luxo de comprar um bom livro, um bom vinho vez ou outra. Trinta e tantos alunos por turma, dez aulas por dia. Não sabia o nome de nenhum. Tinha gente lá na escola que trabalhava desde que ele entrou, o inspetor de pátio de quem não lembrava o nome, mas do inspetor ele gostava. De certo o homem regulava de idade com ele, grisalho, magro, sorriso largo. Era um sujeito bacana, pena que não conseguia se lembrar o nome.

É dia. Acorda na pequenez do quarto que, nos primeiros segundos, parece uma imensidão. Tudo vai ganhando forma, os móveis, a cadeira da escrivaninha, a janela de vidros embaçados, o verde das plantas que sobrevivem sabe-se lá de que maneira desde que a mãe morreu, já faz tanto tempo. Faz muito tempo e tudo permanece mais ou menos vivo. Mecanicamente, coloca os pés na rua.

Na escola, sentiu falta do cumprimento no portão. O inspetor não está na entrada de alunos. Olha por cima das crianças e avista o boné, no fim do corredor. Ufa! O inspetor restaura no seu peito a normalidade de mais um dia de semana. O boné vem em sua direção, lento, atrasado pela multidão fervilhante de alunos com suas vozes agudas enchendo o corredor. O sinal toca.

Em meio minuto ou menos, o corredor se esvazia. Diante dele, o inspetor de boné auxilia um aluno numa cadeira de rodas, desde quando aquele garoto era aluno da escola? Suas pernas carrancudas quiseram sorrir e tremeram um pouco. Era a primeira vez que ele olhava assim a cara de um aluno, lá dentro, pra além da pele e dos ossos da cara, agarrando-se aos olhos. Não havia nada de diferente ou semelhante. Nada de próximo ou distante. O menino sorriu. “Bom dia, professor”. Silêncio. Vinda do vazio daquela cara adolescente, o bom dia era faca quente. Depois foi o deslizar da cadeira rumo à sala de aula.

Ele viu o corredor se esvaziar enquanto buscava se lembrar de comandar as próprias pernas, agora tão frouxas pelo contato com uma faísca de humanidade que já não via desde muitos ontens. Finalmente, as unhas apertaram ainda mais forte a alça da bolsa de couro e, um pé depois do outro, ele caminhou até a sala de aula e sentiu o dia transpassar seu corpo cansado de anos.

Sinal. Alcança o portão da escola, a rua, o prédio, enfim, a familiaridade da casa.

Encharcadas, as suculentas esmorecem no velho vaso trazido pela mãe na última visita. Nada vingava ali, nos 44 metros quadrados do apartamento que mal se sustentava sobre as gigantescas vigas de concreto levantadas pelo menos 50 anos antes. A poeira de meses sobre os livros envelhecidos que espreitam das estantes. As samambaias pendem das paredes, cansadas, desistentes. O mundo oscila. Ele não se move.

São 7:45 da manhã e a aula está começando. Ele não vai. Ele não se move. Encharcado, esmoreceu. Seu corpo também pende no centro do apartamento acinzentado, cansado, desistente.

Nada vingava ali.

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