libertação gay?

Diego Moschkovich
MARICONA
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7 min readFeb 12, 2020

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Depois da Parada LGBT de 2019 minhe namorade me chamou a atenção para uma foto, que tinha sido compartilhada no Facebook. Um menino — branco, aparentemente de classe média — empunhava um cartaz: “gays pela abolição de gênero”, com um grande triângulo rosa no meio. Não vou, aqui, entrar no mérito dessa grande bobagem em si, pois tem coisas (como o dito “feminismo radical” transfóbico e seus bichinhos de estimação) que merecem apenas o combate e o enfrentamento direto. Mas uma outra coisa me chamou a atenção, na plaquinha do menino.

Há algum tempo tenho me dado a tarefa pessoal de entender um pouco o movimento de Libertação Gay que estourou na Europa e nos Estados Unidos entre os anos 60 e 70. Esse movimento, que fez algumas tentativas importantes de analisar a libertação gay desde uma perspectiva da luta de classes era predominantemente tudo aquilo o que hoje não está contemplado pelo conceito de “gay”: era não-branco, não-cisgênero e não-masculino. Ontem mesmo assisti um pequeno fragmento de um discurso de Sylvia Rivera — uma das protagonistas da revolta de Stonewall e organizadoras da Frente de Libertação Gay, depois — conclamando as massas à palavra de ordem gay power (poder gay). O óbvio, é claro, é que as palavras mudam seu significado, e logicamente esse conteúdo mudou, de alguma forma. Mas o que não é tão óbvio, certamente, é como essa palavra — gay — que era originalmente um contraponto subversivo ao termo queer (originalmente ligado à homossexualidade heteronormativa) teve seu significado completamente invertido nas últimas décadas.

O que proponho, aqui, são algumas reflexões livres sobre os períodos de descenso na luta do movimento social. Esses períodos, como podemos verificar algumas vezes na história, são períodos onde geralmente há uma grande derrota após uma grande efervescência da luta e, estabelecidos vencedores e vencidos, estabelece-se a narrativa sobre o período anterior. Se por um lado é claro que, de forma geral, quem dá a tônica da narrativa são os vencedores, por outro é certo que ela muitas vezes não é estabelecida de forma homogênea por estes: a correlação de forças e os termos nos quais deu-se a vitória muitas vezes forçam a termos mesmo a narrativa, que passa a ser costurada entre os vencedores e aqueles vencidos que recebem uma série de privilégios por seu silêncio, ou pela obediência às regras de quem venceu.

Mario Mieli, certamente um dos mais interessantes e radicais teóricos do movimento de libertação gay dos 70, em seu livro Elementos de uma crítica homossexual (1976) fala, inspirado pelos avanços de libertação feminina de então, de uma segunda onda do movimento de libertação homossexual, que teria começado com as Frentes de Libertação organizadas na Europa e nos Estados Unidos. A primeira onda, diz ele, é a capitaneada por Magnus Hirschfeld e pelo Comitê Cietífico-Humanitário na Europa, entre o final do século XIX e a ascensão de Hitler ao poder. Como sabemos, a ascensão do fascismo não representou apenas a eliminação física de toda uma geração de líderes do movimento de libertação, como também eliminou a maior parte do conhecimento científico e humano acumulado desde a fundação do Comitê. Aquela fogueira famosa da “queima de livros” hitlerista é a fogueira feita com a biblioteca do CCH de Hirschfeld.

Depois da segunda guerra mundial, como apontam Valocchi (1999) e Preciado (2018), os Estados Unidos tornam-se o país onde mais há investimentos em pesquisa científica sobre a sexualidade, pesquisa esta que acontece predominantemente dentro das instituições militares estadunidenses. Essa primeira época de refluxo é marcada pela criação de duas organizações homossexuais. A Mattachine Society, de homens homossexuais e a Daughters of Bilitis, de mulheres homossexuais. Ambas as organizações eram predominantemente brancas, cisgênero e com membros oriundos de uma camada média intelectualizada da sociedade. Trata-se da primeira vez em que coletivos homossexuais aceitam para si uma designação de homossexual tal como esta havia sido trabalhada e definida dentro dos círculos de pesquisa militares dos EUA. O termo homossexual, claro, foi cunhado pela primeira vez no século XIX, mas a diferença fundamental entre o Comitê de Hirschfeld e as sociedades gays e lésbicas dos EUA-pós guerra está em que os primeiros, apesar de buscar definir nos termos da ciência da época a homossexualidade o faziam em seus próprios termos. A Mattachine Society e a Daughters of Bilitis, por outro lado, aceitavam as definições médicas da época: a homossexualidade definida a partir da escolha do objeto sexual de desejo.

É essa escolha que, ao mesmo tempo em que apaga a possibilidade de existência de diferentes identidades homossexuais ligadas à performance de gênero e cria uma primeira possibilidade de negociação de privilégios através da afirmação de uma identidade homossexual heteronormativa: ao ser estritamente definida pela escolha do objeto sexual, a sexualidade confinava-se à esfera privada e podia lidar apenas com corpos não-desviantes. Segundo Valocchi, são essas organizações quem autointitula-se queer, então um termo neutro para evitar as definições generificadas de homossexualidades vindas das classes proletárias. Nestas,

Homens com interesse erótico em outros homens possuíam muitos estilos de gênero, hábitos sexuais e posições de classes diferentes, e, juntos, constituíam não uma, mas muitas redes de afiliação, parcialmente interseccionadas. (…) Homens não eram gays ou héteros, mas pansies, husbands, trade, jockers e queers¹. Estes não eram rótulos diferentes para o mesmo grupo impostos de fora, mas demarcadores internos de consciência e cultura.

Nas comunidades da classe trabalhadora, o homem gay mais visível era a “pansy”, ou “fairy”, alguém que identificava-se e era identificade por outros não com base na escolha do objeto sexual ou atividade sexual preferida, mas na base de sua afeminação, ou “inversão de gênero” (…)

Como nas comunidades masculinas, as comunidades femininas também diferenciavam-se por classe e estilo de gênero. Como Faderman (1991) e outros (Kennedy e Davis 1993; Nestle 1987; Rupp 1989) mostraram, a história da vida lésbica no século XX foi a história de uma variedade de modelos de lesbianismo. Havia as amizades românticas que dominavam a classe média da primeira parte do século, assim como as kikis de classe média, que definiam-se pela escolha do objeto sexual e sua discrição e respeitabilidade. Havia também as bucthes, femmes e as “crossing women”² nas comunidades da classe trabalhadora do século XX, que definiam-se antes pela performance de gênero do que pela escolha do objeto sexual. (Valocchi, 1999)

Segundo o mesmo autor, no citado e (em minha opinião brilhante) artigo “The class-inflected nature of gay identity”, o que leva as camadas médias a aderir à designação médica da sexualidade definida através da escolha do objeto sexual é uma certa “ansiedade de classe média” (sic) para se encaixar na norma. Bom, eu adiciono: não seria essa, de modo geral, uma ansiedade típica dos momentos de descenso da luta, quando a classe média enquanto classe preservada do período anterior, busca sua salvaguarda nas estruturas de dominação do Estado burguês?

Bem, quando emerge o movimento de libertação gay, nos anos 1970 (principalmente a partir de Stonewall, mas não só), este movimento que, como disse, era basicamente não-branco, não-cisgênero e abertamente parte — no contexto da luta de classes dos anos 1960–70 nos países centrais do capitalismo — da nova ofensiva proletária de então,tem, como um de seus objetivos imediatos retomar todas as identidades homossexuais apagadas pelo movimento anterior, e é aí que passa a ser empregado o termo gay, como uma contraposição de classe e anti-normativa ao queer.

Este movimento é interessante e traz experiências de formulação e luta que, como penso, precisam ser resgatadas por nossas gerações ativas do começo do século XXI. Mario Mieli, em minha opinião quem mais conseguiu formular teoricamente os objetivos da segunda onda de libertação gay, por exemplo, parte de Jacques Camatte, um marxista outcast da esquerda radical italiana, para dizer que a libertação homossexual era um imperativo na luta comunista dos países onde o capital passara de seu estágio de dominação formal para o de dominação real. Trabalha a libertação homossexual como uma parte avançada da libertação do Eros de Marcuse para desenvolver uma formulação inédita, de que não só há uma transsexualidade profunda e inerente ao ser humano, como esta a transsexualidade seria de fato o telos, ou seja, a finalidade da libertação do eros na luta pelo comunismo.

Mas este movimento também tem seu ápice e, derrotado em suas aspirações pela libertação do eros humano e também dizimado num genocídio que continua a acontecer até os dias de hoje — a epidemia HIV/aids.

Observando bem, é apenas a partir da derrota do movimento de libertação e do genocídio causado pela epidemia de HIV/aids que a sexualidade, no âmbito geral de sua representação na sociedade, é novamente identificada com a escolha do objeto sexual, privatizada (no sentido em que restrita mais uma vez aos âmbitos privados da vida, ainda que diferentes dos das décadas de 1950–1960) e passa a fazer parte de uma nova onde de normativização, a que gerará, no início dos anos 2000, o que Jasbi K. Puar chamará de homonacionalismo, ou seja um corpo de ideias sobre a homossexualidade aceito pela norma, privilegiado por ela nos países ocidentais e instrumentalizado com os fins da política do imperialismo. Esse homonacionalismo é o que, entre outras coisas, apropria-se historicamente do termo gay e o ressignifica para conter o significado da plaquinha do menino na parada LGBT de São Paulo, em 2019. Trata-se de um termo gay que desconhece a quase infinitude de performances de gênero e de identidades sexuais presentes da realidade concreta e que define-se, assim como designado pelos médicos da heteronorma, pela simples e fictícia escolha do objeto sexual. É preciso que saibamos claramente. Na novo ascenso que está sendo gestado pelas lutas de classes do próximo período, é essa gente que o movimento LGBT deve combater.

Referências bibliográficas:

MIELI, Mario. Towards a gay communism. Elements for a homossexual critique. Londres: Pluto Books, 2018.

PUAR, Jasbi K. Terrorist assemblages. Homonationalism in queer times. Durham e Londres: Duke University Press, 2007

PRECIADO, Paul. Testo-junkie. São Paulo: N-1, 2018

VALOCCHI, Steve. “The class-inflected nature of gay identity”, in: Social Problems, May 1999 v46 i2 p207(1).

Notas:

¹: pansies, husbands, trade, jockers e queers: Mantive os nomes no original, mas certamente é possível buscar correlatos mais ou menos certeiros para a realidade brasileiras: bichas, bofes, mariconas, viados, etc.

²: butch, femme, “crossing women”: idem.

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