para um comunismo (trans)viado.

Diego Moschkovich
MARICONA
Published in
5 min readAug 7, 2020

Apresentamos, a seguir, o prefácio do livro Elementi di critica omossessuale, de Mario Mieli (1977). O livro, uma das primeiras tentativas de teorizar a práxis do movimento de libertação gay e lésbico dos anos 1960–1960, foi amplamente difundido com o nome inglês de Towards a Gay Communism, numa brochura publicada em Londres pela Gay Men’s Press, em 1980. Trata-se de um precursor, em muitos aspectos, de algumas linhas da teoria queer, que apareceria mais ou menos uma década depois. A tradução do livro todo está sendo feita pelo coletivo maricona, e atualmente buscamos uma editora parceira para o projeto. Você tem ou conhece uma editora interessada? Mande um e-mail para nós.

Mario Mieli (1952–1983)

Elementos de crítica homossexual.

Prefácio

“Estamos completamente certos quando dizemos que os únicos especialistas em homossexualidade são os homossexuais.” Herbert Spiers(1)

Este livro é uma reelaboração de minha tese de doutoramento, que discorria sobre temas da homossexualidade masculina. Daí derivam, creio, alguns de seus limites, que em primeiro lugar dizem respeito a uma certa disparidade de estilo, obtida ao misturarem-se os tons empolado da academia com o menos inibido do modo de expressão das bixas(2). Quanto ao conteúdo, penso que a disparidade da escrita diz respeito ao aprofundamento de certas coisas e a permanência de outras, que ficaram mais ou menos no mesmo nível da primeira versão.

Assim como a tese, esse livro diz respeito, principalmente, à homossexualidade masculina, ainda que muitos dos argumentos tratados remetam à homossexualidade num sentido mais amplo. Enquanto viada(3), preferi fazer o menos possível referência à homossexualidade feminina, já que as lésbicas são as únicas que sabem o que é o lesbianismo e que não falam dele em abstrato.

Mais ainda, num tempo em que a questão homossexual é um verdadeiro mare magnum (4), que desemboca diretamente no oceano da questão feminina, decidi limitar-me a encarar, em particular, seis temáticas:

  1. Confrontei, com o meu ponto de vista — que foi maturado e rejuvenescido no âmbito do movimento gay — muitos dos mais difundidos lugares-comuns anti-homossexuais e algumas das mais conhecidas teorias psicanalíticas que tratam da homossexualidade. Fiz isso porque considero oportuno contrapor as nossas opiniões como gays, mesmo sobre uma “base teórica”, àquelas tradicionais dos héteros, que, como regra compartilham — mais ou menos voluntariamente, mais ou menos conscientemente — os (pré)conceitos de uma certa canalha reacionária, sobretudo daqueles médicos, psicólogos, sociólogos, magistrados, políticos, padres, etc. que tomam como verdade as mais grosseiras — raramente, também, as mais sutis — mentiras sobre a homossexualidade. Nós que não nos identificamos com a “Ciência” destes senhores, façamos referência a uma gaya ciência(5).
  2. Apontei brevemente a repressão da homossexualidade na história (ou, pré-história, no sentido marxiano), com o objetivo de recordar a origem histórica do tabu anti-homossexual e de demonstrar o quão terrível foi a perseguição contra nós, homossexuais, no passado, e o quão terrível é ainda hoje.
  3. Insisti na presença universal do desejo homoerótico, normalmente negada na ideologia capitalista-heterossexual. Ainda hoje, tem-se geralmente que a questão homossexual diz respeito exclusivamente a uma minoria, um número limitado aos viados e lésbicas: não querem render-se ao fato de que, enquanto a homossexualidade continuar reprimida, o homossexual será um problema que dirá respeito a todos, já que o desejo gay está presente em todos os seres humanos e é congênito, ainda que na maioria dos casos fique recalcado ou semi-recalcado.
  4. Tentei jogar certa luz sobre as relações existentes entre o homoerotismo e o que está por trás do “véu de Maya”, ou seja, o que está por trás da percepção ordinária geralmente considerada “normal” e hipostatizada pelo sistema. Indico a homossexualidade como ponte para uma dimensão existencial radicalmente diferente, sublime e profunda, e que é em parte revelada pelas assim chamadas experiências “esquizofrênicas”.
  5. Sublinhei a importância da liberação da homossexualidade no quadro da emancipação humana: de fato, para a criação do comunismo, é condição sine qua non, entre outras, a completa desinibição das tendências homoeróticas, que, assim que libertas, possam garantir a obtenção de uma comunicação totalizante entre seres humanos, independente de seu sexo.
  6. Defini como transsexual a nossa disponibilidade erótica potencial, constrita pela repressão à latência ou sujeita ao recalque mais ou menos severo e, assim, indiquei na transsexualidade o telos (um telos propriamente dito, enquanto finalidade interna) da luta pela liberação do Eros.

Espero que a leitura deste livro favoreça a liberação do desejo gay preso em todos aqueles que o reprimem; que ajude os homossexuais manifestos — hoje, escravos de um sentimento de culpa induzido pela perseguição social — a liberar-se dessa falsa culpa. É tempo de extirpar o senso de culpa, funcional apenas à perpetuação do mortífero domínio do capital, e de opor-nos, juntos, a este domínio e à Norma heterossexual que contribui para mantê-lo, e que garante, entre outras coisas, a sujeição do Eros aos trabalho alienado e a separação entre homens, entre mulheres, e entre homens mulheres.

Sou profundamente grato a Rosa Carotti, Adriana Guardigli, Corrado Levi, Manolo Pelegrini e particularmente a Francesco Santini por terem me ajudado a escrever este livro. Também gostaria de agradecer: Angeli Pezzana, que aconselhou-me a publicá-lo, Myriam Cristallo, que foi a primeira a lê-lo, e Walter Pagliero, que emprestou-me livros e artigos que se mostraram muito úteis. Tenho uma enorme dívida para com Silvia Colombo, Marcello Dal Lago, Franco Fergnani, Maria Martinotti, Denis Rognon, Guia Sambonet, Anna Sordini, Aldo Tagliaferri e Annabella Zaccaria por suas valiosas sugestões.

Usei os termos “homossexualidade” e “homoerotismo” como sinônimos e “gay” como sinônimo de homossexual ou “homoerótico”. Usei o termo “pederastia” apenas em seu sentido real para definir o desejo erótico direcionado a uma pessoa muito jovem.

Notas:

(1) Herbert Spiers, “Psychiatric Neutrality: An Autopsy” [Neutralidade Psiquiátrica: uma autópsia], em The Body Politic, no. 7, 1973: 14–15]. Nota da tradução: Mieli apresenta a epígrafe em inglês no original italiano.

(2)Mieli usa, no original italiano, a palavra gaio/gaia, que é uma italianização do gay inglês. Talvez pudéssemos usar o guei usado pela primeira geração do movimento de libertação homossexual brasileiro. Como o guei é uma proposição de substituição do gay e o gaio, como veremos, usa-se em paralelo, preferimos usar o brasileiro bixa para esse termo. (N.T)

(3) Em italiano, checca. (N.T.)

(4) Do latim grande mar. A expressão, que originalmente servia para designar o mediterrâneo, passou, com o tempo, a significar o desconhecido, o inexplorado. (N.T.)

(5) Em italiano, gaia scienza. Trata-se de um jogo de palavras de Mieli com a Gaia Ciência de Nietzsche, pela acepção de gaia como adjetivo de gay entre as bixas italianas. Para manter o jogo de palavras, criamos o gaya. (N.T.)

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