Elas são uma piada

Marie Curie News
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12 min readMar 7, 2019

A comédia pode ser um meio de limitar ou libertar as mulheres. Quem nunca mascarou a verdade com uma piadinha? Ou se pegou rindo para não chorar de uma situação? Se, por um lado, o bom-humor leva a um estado de independência ilusório — já que permite um comportamento fora do comum, — por outro, vira uma forma de conter ou disfarçar um descontentamento.

Em outras palavras, o humor pode ser utilizado como uma ferramenta contra as mulheres, para restringir seus comportamentos e, ao mesmo tempo, ser uma forma de liberação. Essas conexões e contradições foram abordadas por livro Women & Comedy (1991), de Susan Carlson.

Estudando, principalmente, o teatro britânico, a autora compartilha:

“Eu descobri que quando mulheres escrevem, a comédia é um de seus veículos primários para expressar triunfo. Paradoxalmente, descobri que a comédia para mulheres é ao mesmo tempo uma fardo sedutor e uma força regenerativa. Estudando tanto problemas quanto possibilidades oferecidas pela comédia, minha principal preocupação era como o drama cômico desencorajava, acomodava e/ou promovia mudanças”.

Rir para não chorar

Desde o século XVII, depoimentos de críticos do teatro e da arte em geral que mostram o quanto comédia não era visto como um gênero que poderia ser protagonizado por mulheres. As opiniões negativas não se referiam tanto ao espaço da mulher nos palcos, mas a uma pré-concepção que basicamente determinava: mulher não é engraçada.

Richard Grant White, um dos mais aclamados especialistas culturais do século XIX dizia, inclusive, que senso de humor “é a mais rara qualidade que pode ser encontrada em uma mulher.” E nem é preciso voltar tanto no tempo para encontrar declarações assim. A comediante Anne Beatts, roteirista do Saturday Night Live, escreveu sobre o assunto na década de 1970, no livro We Killed: The Rise of Women in American Comedy. Ela conta que um dos comediantes do show, John Belushi, vivia pedindo para que as mulheres fossem demitidas. “Fire the girls”, ele dizia. Outra roteirista da equipe, Jane Curtin, disse numa entrevista que a coisa chegava ao ponto de ele sabotar as esquetes escritas por mulheres. Ela alega que Belushi performava mal neles durante os ensaios, para que elas nunca fossem ao ar.

Em 1998, o ator Jerry Lewis, que ficou mundialmente famoso por seu estilo de comédia pastelão, afirmou: “eu não gosto de comediantes mulheres. Uma mulher fazendo comédia não me ofende, mas me retrai um pouco. Como espectador, eu tenho um problema com isso. Eu penso nelas como uma máquina que fabrica bebês para o mundo.” Se anos 1990 estão muito distantes para você, em 2007, o premiado jornalista Christopher Hitchens publicou na Vanity Fair uma coluna inteira explicando porque, por razões biológicas e culturais, mulheres não eram tão engraçadas quanto homens. Logo no começo do artigo, aliás, ele justifica seus motivos para escrever sobre o tema: mulheres sempre procuram homens que façam-nas rir. Então, ele segue destrinchando os motivos para os quais a máxima não é verdadeira quando um homem fala de uma mulher.

Cinco anos depois, o comediante Adam Carolla (The Hammer) disse em alto em bom som, numa entrevista ao New York Post: “o motivo pelo qual você conhece mais homens engraçados do que mulheres engraçadas é porque homens são mais engraçados do que mulheres.”

Seria cômico, se não fosse trágico.

Trágico porque, como explica a psicóloga Lilian Andrés, atitudes como essas não apenas diminuem a presença feminina no meio da comédia, como faz com que muitas mulheres com potencial percam uma característica essencial para ter sucesso na área: a espontaneidade. “Se acreditamos na ideia de que mulheres são menos engraçadas, acabamos nos arriscando menos nas piadas. E no humor se arriscar é fundamental.”

Por conta desses e outros caras, os clubes de comédia eram, há até pouco tempo, lugar difícil para uma mulher tentar a vida. Uma repórter do site Bitch fez um levantamento dos comediantes que se apresentaram em um dos maiores deles dos Estados Unidos, o Carolines. Entre 2011 e 2014, essa era a participação das mulheres:

Porcentagem de mulheres nos clubes de comédia

  • 21,3% — atuando como mestre de cerimônia (que seria uma espécie de “iniciante”do stand up).
  • 14,3% — atração coadjuvante do show.
  • 8,3% — atração principal do show.

Nos últimos anos, felizmente, uma leva de talentosíssimas (e engraçadas) mulheres vem abrindo espaço para novas comediantes. O mais bonito da história é que elas fizeram isso falando, ou melhor, fazendo piadas, justamente, sobre preconceito, objetificação e outros obstáculos que as mulheres têm de enfrentar no dia a dia. Quem não lembra quando Amy Poehler e Tina Fey foram as anfitriãs do Globo de Ouro, em 2014? A gente refresca a memória de vocês:

In Into the Woods, Cinderella runs from her prince, Rapunzel is thrown from a tower for her prince, and Sleeping Beauty just thought she was getting coffee from Bill Cosby. I don’t know if you guys saw this on the news today, but Bill Cosby has finally spoken out about the allegations against him. Cosby admitted to a reporter, ‘I put the pills in the people. The people did not want the pills in them.”

Sobre as acusações de assédio contra o comediante Bill Cosby.

“Boyhood proves there are still great movies for women over 40, as long as you’re cast when you’re under 40.”

Sobre a indicação de Patricia Arquette, na época com 46 anos, ao Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante, por sua atuação em Boyhood.

A participação das duas foi elogiadíssima pela mídia. Ainda mais porque, naquela edição da premiação, elas não foram as únicas a falar sobre discriminação de gênero. A própria Patricia Arquette fez um discurso de arrepiar sobre o pay gap de Hollywood entre homens e mulheres.

A verdade é que o humor está ligado a um aspecto do ser humano: a inteligência.

Por isso, fizemos uma seleção de mulheres inteligentes e engraçadas para você assistir ao longo dos próximos dias. Suas apresentações estão disponíveis na Netflix e no YouTube.

Com mais de 35 anos de carreira no mundo artístico, Grace Gianoukastrabalha como atriz, diretora, autora, produtora, cronista e — motivo pelo qual ela é mais conhecida — humorista. Atualmente, ela interpreta a dama de companhia Petúlia na novela Orgulho e Paixão, onde ela consegue explorar bastante sua veia cômica. Mas é no teatro o lugar em que Grace mostra de verdade a que veio. Isso porque, apesar dela ser presença constante na TV nos últimos anos, a maior parte da sua fama chegou por meio da internet. Grace é a criadora do Terça Insana , um projeto humorístico criado em 2001 no qual cada artista tinha 10 minutos para fazer um monólogo. Graziella Moretto, Marcelo Médici, Luis Miranda e Marco Luque são alguns dos nomes que já se apresentaram por lá.

Para atrair mais audiência para os espetáculos, o canal do grupo publicou algumas das apresentações ao vivo — isso por volta de 2006, quando o YouTube ainda não tinha tanto conteúdo produzido especialmente para os usuários e muito menos influenciadores. Foi um sucesso: apresentações como a da Irmã Selma foram vistas por milhões de pessoas.

E a própria criadora também produziu diversas esquetes para o Terça. As duas mais conhecidos são Lexotan, no qual a humorista interpreta uma atriz que conta causos sob o efeito do remédio, e o quadro no qual uma mãe e dona de casa fala sobre a sua rotina de uma forma impossível de não se identificar, se você vive esse momento:

“Nós mulheres sonhamos com um cara gentil, empreendedor, com bom senso, bem-humorado, que seja capaz de amparar , que goste de conversar…

Conversar.

Eu falo, ele escuta.

Ele fala, eu escuto.

Que goste dessas coisas de homem, futebol e corrida de carro.

Mas que goste também de passar uma boa roupa pra ajudar no serviço.

Porque todo o mundo trabalha.”

O nome dessa comediante pode não passar batido por você. O stand-up Nanette, escrita e interpretada por ela foi divulgada recentemente pela Netflix e vem gerando bastantes discussões.

A fama, apesar de repentina, é muito merecida: a comediante emociona ao falar de forma honesta sobre os traumas que sofreu por ser uma homossexual nascida na Tasmânia, país onde sua identificação sexual era crime até 1997. Só que, com a mesma habilidade de que consegue fazer a gente sentir na pela sua dor, ela faz um comentário capaz de tirar toda a plateia da bad vibe. A reflexão permanece.

Outro ponto muito comentado por Hannah em seu show é o desejo de deixar a comédia. Nas suas palavras: “Construí uma carreira com base no humor auto-depreciativo. E não quero mais fazer isso.” Durante o espetáculo, Hannah explica ter chegado à conclusão de que essa espécie de humor mais atrasa do que acelera a aceitação ao diferente e a tolerância, e esse é um dos motivos pelos quais ela quer dar um tempo na carreira. “Você aprende com a parte da história na qual foca. E eu preciso contar a minha história do jeito certo.”

E um dos melhores momentos da apresentação, no qual Hannah comenta sobre doenças mentais .Um trecho que vale à pena mostrar é quando ela fala sobre a importância dos remédios e como pré-conceitos podem prejudicar o tratamento:

“Alguns anos atrás, um homem veio falar comigo após meu show. Durante a apresentação, eu falei sobre tomar medicamentos antidepressivos e ele tinha uma opinião sobre isso. […] ‘Você não deveria usar remédios porque é uma artista. É importante que você sinta. Se Vincent van Gogh se medicasse, nós não teríamos [o quadro dos] girassóis’. Eu disse ‘Boa opinião, moço. Exceto pelo fato de que ele se medicava. Muito. Ele se automedicava bastante. Ele bebia bastante. Ele comia as tintas.

E sabe o que mais? Ele não pintou apenas girassóis, fez alguns retratos de psiquiatras. Não de psiquiatras aleatórios. Psiquiatras que estavam tratando dele. E medicando-o. Há um retrato particular de um psiquiatra em específico, em que ele está segurando uma flor, e não é um girassol. É uma dedaleira. E essa dedaleira faz parte de uma medicação que Van Gogh tomava para a epilepsia. E se exagera na dose desse remédio, sabe o que acontece? Você pode experimentar a cor amarela com muito mais intensidade.

Então talvez… Nós temos os girassóis precisamente porque… Van Gogh se medicou. O que você pensa honestamente, companheiro? Essa criatividade significa que eu devo sofrer?Esse é o fardo da criatividade? Só para você poder aproveitar? Foda-se companheiro. Se você gosta muito de girassóis, compre um buquê e se masturbe num gerânio’”.

“Sempre que a Sarah sobe no palanque eu fico empolgada porque não faço a menor ideia do que vamos receber: um comunicado de imprensa, um monte de mentiras ou um resumo sobre as equipes de softball. Eu realmente gosto da Sarah. Eu acho ela uma pessoa muito versátil. Como quando ela queima fatos e usa as cinzas para fazer um sombreado perfeito nos olhos. Como se ela já tivesse nascido assim. Ou talvez sejam as mentiras. Provavelmente são as mentiras.”

O nome completo da Sarah em questão é Sarah Huckabee Sanders, a secretária de comunicação da Casa Branca. E os dois parágrafos traduzidos acima foram ditos por Michele Wolf durante o jantar que reúne membros da Associação de Correspondentes da Casa Branca.

Por “ter tido peito” para fazer essas provocações dentro em um ambiente do governo, e por ter elaborado seu texto de uma forma sofisticada (não é a qualquer pessoa que associa cinzas e sombreado), a comediante americana firmou seu espaço nos EUA.

Se esse é o seu estilo de humor, já dá para conhecer um pouco mais da mente rápida e língua afiada de Michelle: a Netflix lançou recentemente a primeira temporada de The Break, uma série de 10 capítulos, com cerca de 25 minutos de duração cada.

E pegar a pipoca, sentar no sofá e curtir o shade.

Em geral, os humoristas usam o termo punch line para descrever a frase que termina uma piada. Algo como aquele último estalo, o soco antes de um nocaute de risadas. Bem, Sasheer Zamata sobe o nível do punch. A atriz e comediante é conhecida por utilizar seu humor como uma ferramenta para enfiar o dedo em feridas antigas, como racismo e a falta de diversidade no ambiente de trabalho. Combinar ativismo e humor não faz dela menos engraçada. Pelo contrário.

Um exemplo é o stand-up da comediante sobre seu nome não ser pronunciado corretamente pelos caucasianos. Pior: em uma apresentação, uma anfitriã não sabia como pronunciar “Sasheer” e perguntou para a comediante se poderia apresentá-la ao público com o nome de “Jane”. A resposta não poderia ser menos afiada:

— Ah, você quer me dar um nome de escravo? Me desculpe se o meu nome é muito étnico para você. Desculpe não conseguir um lugar para tanta herança cultural nos seus lábios tão pequenos.

E o plot-twist aqui é que o nome da atriz tem inspiração em uma flor do universo ficcional de Star Trek. O quanto isso revela sobre as pessoas? No fim das contas, a atriz ainda brinca com o fato de que não gostava de seu nome na infância, mas aprendeu a lidar com o problema de um jeito matador. “Afinal, meu nome me torna parte de uma minoria ainda menor. Nerds negros. A luta é real”. Dá para sentir a carga de realidade que uma “brincadeira” pode ter?

Poder fazer as pessoas rirem e, dois segundos depois, refletirem sobre o mundo a sua volta é uma arma poderosa. Além do serviço de vídeos, você pode conferir o show Pizza Mind de Sasheer Zamata no iTunes e Spotify.

Definitivamente um dos principais nomes da comédia atual no Brasil, Tatá Werneck já dá o ar da graça na tela da TV há uns bons anos. Cria da MTV, a carioca já era uma conhecida da geração millennial que passava as tardes acompanhando a programação da emissora de músicas, por causa das suas participações no Comédia ao Vivo MTV. Em 2012, seu desempenho por lá até rendeu o troféu de “Humorista Favorita” na edição 2012 dos “Meus Prêmios Nick”.

Em 2013, sua fama aumentou ao participar da novela Amor à Vida, da TV Globo, interpretando uma personagem que tinha os dois pés na comédia. De acordo com os críticos, Tatá navega com bastante desenvoltura por diferentes situações. Com seu pensamento rápido e uma grande capacidade de improvisação, ela consegue tirar piadas hilárias mesmo de assuntos aparentemente sem graça.

Desde abril do ano passado, Tatá conseguiu mais espaço para mostrar ao mundo que chegou para ficar. Ela comanda o Lady Night,programa de entrevistas noturnas hospedado no Multishow. Aliás, com o novo cargo, a ex-MTV se tornou a primeira mulher a apresentar um programa de entrevistas desse em uma emissora por assinatura na televisão brasileira. E sua estreia como host foi embalada:ela recebeu da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) o troféu de Melhor Apresentadora, menos de um ano após o lançamento. É pra quem pode.

Separamos alguns trechos das entrevistas feitas no Lady Night para mostrar de forma mais concreta como o conjunto “improviso + pensamento rápido”faz diferença:

Na entrevista com a atriz Carolina Dieckmann:

— O que você pensa quando está fazendo essas cenas de choro?

— Eu penso em alguma coisa muito triste.

— Alguma coisa familiar? Um Marcos Frota?

Com a cantora Marília Mendonça:

— Quantos shows você faz por mês?

— Ah, uns 25 shows em média.

— Já voltou na sua casa? Tem alguém morando lá?

Num papo com a atriz Maisa Silva:

— Você pensa em mudar de emissora?

— Olha, se eu achar um dia um projeto que eu me apaixone, e que eu tenha as mesmas oportunidades que eu tenho no SBT, que é a minha segunda casa, aí eu mudo de casa.

— Então digo já: aqui não terás.

Marie Curie é uma newsletter que traz conteúdo para mulheres. Toda semana, discutimos algum tema ou trazemos uma entrevista que tenha impacto na maneira como você trabalha, se posiciona e se relaciona com a sociedade.

A versão original dessa matéria foi publicada em 16 de agosto de 2018. Para se inscrever e receber um e-mail nosso todas as quintas-feiras, clique aqui.

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