Esqueça os estereótipos

Mônica Wanderley
Marie Curie News
Published in
12 min readApr 27, 2019

Até porque eles não nos definem

Definições são importantes para estipular uma fronteira a uma ideia ou pensamento. Só que sempre que a fronteira deixa de ser mapa e passa a ser camisa de força, é preciso rever os conceitos, refletir e, se for o caso, se posicionar para deixar entrar e ventilar aquilo que é novo e que funciona na vida atual.

Se você é mulher, sabe que o gênero é fortemente associado a determinadas generalizações que ajudam a compor a noção que a sociedade faz do que é uma mulher e como ela deve ser. Mas as perguntas que precisam cutucar o cérebro de todos diariamente são:

Que estereótipos são esses? Para que servem? A quem servem?

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Antes de tudo, uma rápida definição, só para esse conceito todo ficar mais claro.

Estereótipo é:
Aquilo que se amolda a um padrão fixo ou geral; Esse padrão formado de ideias preconcebidas, resultado da falta de conhecimento geral sobre determinado assunto; Imagem, ideia que categoriza alguém ou algo com base apenas em falsas generalizações, expectativas e hábitos de julgamento; Aquilo que não possui originalidade; banalidade, chavão, lugar-comum.

Na vida real, trata-se de uma espécie de generalização a respeito de padrões, características e comportamentos que a sociedade determina e aceita, como se fosse uma personalização da verdade.

Nessa linha, mulheres são humanas, do sexo feminino, que têm órgão reprodutor com características próprias, que podem gerar e parir filhos, amamentar e cuidar da prole. Agora, indo mais a fundo, há uma série de generalizações que muitas de nós já tivemos de confrontar. Mulheres têm de ser delicadas, graciosas, cozinhar, cuidar da casa e ter um tal instinto materno. Para ser ainda mais aceita de bom grado pelo tradicional é preciso se vestir, falar, andar, agir de um jeito próprio cujo maior objetivo é evitar qualquer tipo de masculinização.

Mas a gente já aprendeu (estamos no ano 2018) que essa pressão social não funciona, que a generalização é uma simplificação brutal que força indivíduos a se moldarem a um coletivo que não enxerga características pessoais. Não é só uma questão de gênero: os estereótipos são associados à idade, raça, sexualidade, profissão, nacionalidade, preferências musicais e um sem fim de caixinhas que criamos para tentar encontrar padrões entre as pessoas. Se você acordou agora de um sono profundo que durou os últimos anos, aqui vai uma novidade para você: não há padrões.

Veja bem, esta é uma conversa importante porque a generalização da sociedade baseada em estereótipos beira a violência. Aquilo que não se encaixa vira um pária, um sem-grupo, quase um criminoso, porque ousar questionar o formato tradicional e usual das coisas.

“O desconhecido é sempre uma ameaça. Desde tempos imemoriais aprendemos a evitar o que nos possa oferecer perigo. Para tanto, como o cérebro não consegue processar instantaneamente todas as informações, criamos categorizações que funcionam como atalhos para organizar os dados. Porém, é fácil cair em erros de julgamento quando classificamos pessoas, pois há uma infinidade de atributos que não se encaixam em padrões previamente definidos e assim surgem os estereótipos. Eles enquadram as pessoas com rigidez em categorias de comportamento ou atitudes. Quando se agrega à este olhar um valor afetivo, que pode ser positivo ou negativo, damos origem aos preconceitos que intermedeiam as relações humanas”, diz a psicóloga Lilian Andrés.

Um pouco de contexto…

O conceito de estereótipo é de 1922 e foi proposto pelo jornalista e pensador norte-americano Walter Lippmann. Originalmente, se refere a um tipo de impressão que marcava o papel para criar textos. Os botões com as letras podiam ser usados diversas vezes para reproduzir palavras diferentes, algo inovador para a época. Então, Lippmann se apoiou nessa noção em seu livro Opinião Pública, para descrever justamente a simplificação que fazemos do mundo e das pessoas a fim de facilitar a nossa compreensão sobre tudo.

Estereótipo, segundo Lippmann, não é preconceito, mas está nos alicerces dele, porque acaba gerando rótulos pejorativos e com impactos negativos. Estereótipo é, sim, uma ideia preconcebida, aceita como verdade e repetida ad infinitum. Por isso mesmo, está na base do racismo, da xenofobia e da intolerância religiosa.

O sociólogo Erving Goffman defendia que a sociedade institui como as pessoas devem ser, e torna esse dever como algo natural e normal. “Um estranho em meio a essa naturalidade não passa despercebido, pois lhe são conferidos atributos que o tornam diferente, podendo resultar na marginalização de indivíduos dentro de uma comunidade”.

A tese de Goffman foi publicada no Brasil em 1980, mas continua absolutamente atual. Mulher que não segue o padrão sofre, de um jeito ou de outro — ou de todos os jeitos — o julgamento e a condenação da sociedade. Esse olhar pouco generoso traz, no fundo, um desejo de controlar os caminhos e as escolhas femininas e, mesmo que de forma sorrateira, impedir a ascensão da mulher para sua rota, qualquer que seja ela.

É preciso, sim, combater os estereótipos. E temos armas, muitas armas para isso. A principal delas? Informação.

Lara Franciulli tem 18 anos e está concluindo o ensino médio. Ao contrário de algumas colegas da mesma idade, ela já sabe a carreira que vai seguir. Com visível inclinação para a área de exatas e muito estimulada pelos pais, Lara participou de competições e olimpíadas de matemática desde os 12 anos. Já ganhou dois ouros na Olimpíada Paulista e um bronze numa disputa Internacional realizada na Argentina. Para Lara, matemática + mulher é uma conta com resultado positivo.

As pessoas ainda se assustam com a vocação para a matemática que faz brilhar os olhos da garota que, segundo os padrões socialmente aceitos, devia preferir as humanidades, ou a área da beleza e da moda. Mais do que isso, a estudante percebeu desde cedo também que tem uma veia competitiva, “coisa estranha de se esperar de uma menina”, mas preferiu fugir da regra da cooperação, e apostar na disputa mesmo. Ela acha competir um estímulo sem igual, por isso vem participando de Olimpíadas nacionais e internacionais. Pela mesma razão, se engajou na luta pelos direitos das mulheres. Em especial, pelo direito das meninas à educação.

No início do ano, Lara esteve na Assembleia da Juventude, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), que reúne jovens de centenas de países para propor soluções para a vida no Planeta. Nesse percurso, conheceu engenheiras, programadoras, físicas e estatísticas. Foi assim que decidiu cursar Ciências da Computação. É uma maneira, explica a guria, de juntar a matemática com uma aplicação bem prática e que afeta diretamente a vida das pessoas. Perfeito para quem ama matemática e adora passar seus conhecimentos adiante.

Lara nem pensou direito nisso — e nem era seu objetivo -, mas está rompendo com vários estereótipos. De que mulher não é boa em matemática ou em ciências, que não lida bem com máquinas e equipamentos, que não foi feita para competir. Mulheres seriam — segundo a visão mais difundida — boas para cooperar, para não se destacar individualmente e para carreiras de humanidades. Ela, assim como tantas outras, sente na pele essa diferenciação e sabe que está mexendo num vespeiro.

Mas nem imagina interromper seus planos para atender às críticas e julgamentos. Tanto assim que já está fazendo a lista das universidades para as quais deve se inscrever. Em tempo, o rol inclui instituições de dentro e de fora do Brasil. A boa notícia é que Lara não está sozinha.

É cada vez mais frequente encontrar mulheres em carreiras e atividades que, no passado próximo, não “serviam” para ela. Trabalhos mais braçais, que dependem de força e de inteligência espacial, por exemplo, eram os primeiros a serem descartados pelas garotas e pelos empregadores. Aos poucos e com uma postura de conquistadoras, as moças foram ocupando também esse lugar. Há, em São Paulo, uma empresa chamada Manas à Obra. As duas sócias, cansadas de precisar chamar mão de obra desqualificada — e ainda correr o risco de sofrer assédio — decidiram elas mesmas estudar e oferecer serviços de reparos, reformas, ajustes hidráulicos e elétricos entre outros. São as duas — hoje com um time de outras garotas — que literalmente pegam no pesado e martelam, serram, passam massa corrida, prendem azulejos, empunham a furadeira, prendem quadros, ajustam varais, consertam válvulas de descarga, trocam chuveiros e muito mais. A ideia pegou e outras empresas similares já existem em várias cidades do Brasil.

A ciência prova que não é de hoje que as mulheres trabalham duro e têm força física para enfrentar as tarefas mais pesadas. Um estudo revelou que as mulheres pré-históricas enfrentavam uma quantidade desproporcional de trabalho braçal. Pesquisadores da Universidade de Tel Aviv publicaram um artigo na revista ScienceMag que descreve com perfeição esqueletos da Europa antiga durante diferentes períodos e analisa e o tipo de deformação que os ossos sofreram. As mulheres pré-históricas desempenhavam ações de força e esforço físico e isso ficou marcado em seus ossos.

“Vai para o tanque, Dona Maria!”. Mulheres que dirigem certamente já ouviram uma bravata dessas nas ruas da cidade. A noção de que as mulheres são barbeiras é absolutamente difundida e difícil de tirar da cabeça das pessoas. Chega a se tornar xingamento: mulher no volante, perigo constante. A sorte é que os números provam o contrário. E, na cola deles, a indústria e empresas relacionadas os trânsito de veículos já perceberam que trata-se apenas de um estereótipo.

Dados do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito) apontam que as mulheres, via de regra, dirigem melhor que homens, causam menos acidentes, fazem menos vítimas e levam menos multas. Quando recebem anotações de radar ou de guardas de trânsito, o delito é mais leve e mais barato do que aqueles cometidos pelos rapazes.

Homens também precisam acionar o seguro do carro com mais frequência do que as mulheres, 70% das indenizações são pagas a motoristas do sexo masculino. Fora isso, os danos causados por eles são mais graves — essas indenizações costumam ser 17% mais altas. Por isso, os seguros que elas pagam costuma ser até 15% mais barato do que o deles. Quem diz não é a gente, mas o Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV) e o site de pesquisas Compara Online.



Quer saber mais uma?
As empresas já sacaram tudo isso. Segundo a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Serviços do Estado de São Paulo (Fecomércio SP), Mulheres representam quase metade dos compradores de veículos, com 45% da fatia do mercado de consumidor. Um pouco menos que os homens, mas muito, muito perto. Já a decisão da compra — do modelo, do ano e de quanto vai se gastar no investimento é das mulheres, em 58% dos casos.

Nada deixa as mulheres mais felizes e satisfeitas que um cartão de crédito sem limite, certo? Mulheres são consumistas e gastadoras, certo?

Não confere, produção, segundo dados apurados pela plataforma de empréstimo Just. A pesquisa revelou que as mulheres gastam 11% menos do que homens em juros e parcelas. O levantamento foi feito com 114 mil pessoas em todo o Brasil. Para chegar a essa conclusão, o estudo considerou desde dívidas de cheque especial até financiamentos imobiliários e empréstimos, incluindo o famigerado cartão de crédito.

Por fim, a ideia de que mulheres não alcançam cargos de chefia porque são menos qualificadas é bem equivocada. A realidade indica que as gerências e diretorias não são femininas porque elas vão, aos poucos deixando de disputar esses espaços. A maternidade afasta do trabalho, porque ainda é exercida quase que exclusivamente pelas mulheres e nem sempre é possível conciliar tudo. Como os salários delas são mais baixos que os deles, se alguém tiver de abrir mão do mercado de trabalho para cuidar das crianças, em geral, é a mulher. Olha só:

Mesmo assim, a mulher ainda ganha menos. Mas não por falta de qualificação ou merecimento. Pesquisas provam que as mulheres trabalham mais e ganham menos -, mas apenas por serem… mulheres. É uma injustiça histórica, que confessa o estereótipo e pune as pioneiras do mercado de trabalho.

Elas recebem 76,5% dos rendimentos que os homens recebem.

Por quê?

Uma possível explicação: apenas 37,8% dos cargos gerenciais no Brasil são ocupados por mulheres.

Para romper um estereótipo, é preciso um trabalho frequente e incansável, já que a sociedade se apoia nessas verdades e se sente confortável quando elas são seguidas. No entanto, como eles já não cabem nos tempos atuais, há que se lutar, um pouquinho por dia, para expandir as fronteiras. Este é um trabalho de todos nós. Dentro e fora de casa. Com parentes, colegas de trabalho, amigos e amigas. Nas palavras da psicóloga Lilian Andrés:


“Desde muito cedo as crianças são motivadas a desenvolverem habilidades ‘mais reforçadoras’ previamente definidas por questões de gênero. E podemos perceber muitas vezes o quanto nos boicotamos quando nos percebemos declinando de novos desafios ou oportunidades em nossas vidas, meramente porque ‘nunca fizemos isso’ ou ‘não tenho aptidão para aquilo’.

Existe o preconceito consciente que foi ‘aprendido’ e que, uma vez detectado, pode ser reformulado. Mas, existe o conceito estereotipado inconsciente do qual, na maioria das vezes, nem nos damos conta, mas que nos interdita na vida pessoal, amorosa e profissional.

São estereótipos que, muitas vezes, tentamos nos submeter. Do tipo: a profissional ultra competente, a mãe amorosa, a mulher bonita, antenada, simpática e ‘ de bem consigo e com a vida’, nos confronta com o humanamente possível cotidianamente. Temos que desenvolver a habilidade de filtrar as informações que nos chegam via pessoas, noticias, apelos e facilidades comercias para nos conectarmos de verdade com aquilo que nos agrega ou nos alegra. Simples assim. Os estereótipos e preconceitos inviabilizam este olhar para fora de nós mesmas e, assim, podemos perder a chance de participar do incessante movimento espiral da vida.”

Agora, um recado da redação

Provavelmente a maioria dos filmes e das séries de ação, aventura ou até mesmo suspense a que você já assistiu possuem uma moça linda que está em perigo e espera um herói que surja para a salvar. Isso porque o protagonismo que representa coragem dificilmente era dado à mulher, afinal a ela cabia ser bela, não forte.

Muita coisa já mudou, mas o cenário ainda é repleto de estereótipos, tanto nas telas quanto no backstage. De acordo com o relatório anual sobre diversidade em Hollywood, elaborado em 2017 pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), apenas 10% das pessoas por trás das câmeras são mulheres, o que movimentou diversas produtoras a solicitarem cotas de gênero na área. Segundo a escritora e diretora Meera Menon, “as cotas são necessárias para que as mulheres possam obter um primeiro emprego como produtoras e também para mudar as mentalidades.”

Ainda há muito para mudar, mas já conseguimos identificar vários exemplos de personagens fortes e corajosas que quebraram diversos estereótipos dentro do cinema, como a incrível Viola Davis em How To Get Away With Murder, interpretando a poderosa advogada e professora Annalise Keating.

E como se esquecer da mãe de dragões? A incrível Daenerys Targaryen, de Game of Thrones, mostrou a milhares de espectadores como uma mulher criada para ser uma doce princesa pode se tornar uma super-heroína e deixar todo mundo de queixo caído.

São diversas mulheres que quebram estereótipos no cinema e na TV; se você se interessa por esse tema, o Clube Minha Série é um espaço superlegal para você expor suas opiniões e trocar ideias com milhares de pessoas — é só clicar aqui!

Marie Curie é uma newsletter que traz conteúdo para mulheres. Toda semana, discutimos algum tema ou trazemos uma entrevista que tenha impacto na maneira como você trabalha, se posiciona e se relaciona com a sociedade.

A versão original dessa matéria foi publicada em 21 de junho de 2018. Para se inscrever e receber um e-mail nosso todas as quintas-feiras, clique aqui.

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