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Mônica Wanderley
Marie Curie News
Published in
11 min readApr 24, 2019

Profissões invisíveis para mulheres

É feito uma gincana maluca. Sabe dessas, de reality show? O apresentador aparece anunciando que os participantes têm de correr até o outro lado de um campo, no menor tempo possível. Mas não é só isso. Parte do caminho tem de ser feito num pé só. Espera, tem mais. Eles também terão de atravessar aros em chamas, dando uma cambalhota. Ah, alguém mencionou o rio cheio de jacarés no meio do caminho?

Se fosse um reality show sobre mulheres e profissões, a coisa seria parecida (claro que sem todo o drama do fogo ou dos jacarés, mas você entendeu o ponto). O apresentador dá o tiro da largada e, logo nos primeiros 10 metros, grita que aquele diretor só contratou você porque te achou uma estagiária bonitinha. “Deixa quieto, vamo embora”, você repete para si mesma. Só que, pouco depois, é obrigada a sentar e perder 20 minutos na disputa, porque outro funcionário, que faz a mesma coisa que você, recebeu um aumento “su-per-me-re-ci-do”. Você precisa esperá-lo receber os parabéns de todos.

Quando finalmente consegue alcançar os outros concorrentes, um cliente aparece de repente e te dá um tapa na bunda, algo que, ele alega, era só para te dar impulso na corrida. Você perde alguns minutos tentando se recuperar. De volta à pista, decide que nada vai te parar, engole o choro, deixa o suor escorrer, vai, garota. Passam alguns momentos, até que alguém anuncia que você se tornou mãe. Que bonito isso, dava até para deixar a corrida de lado. Muitas deixam. Você decide continuar.

E então uma parede se ergue à sua frente: a empresa não tem sala de apoio à amamentação (o que você vai fazer com esse leite escorrendo pela blusa?). Você vira para o outro lado, mais um muro: ninguém olha bem uma funcionária que sai mais cedo para buscar os filhos. “Nessa área sequer tem mulher por causa dessas coisas”, você ouve alguém gritar à distância. Outras tantas colegas de corrida começam a tirar os tênis e a voltar para casa. Porque ficou difícil demais.

Na busca por direitos iguais, as mulheres travam uma de suas batalhas mais difíceis no meio profissional. A luta, no caso, é contra uma porção de fatores que tornam o progresso mais difícil. Não bastassem todos os obstáculos que surgem apenas pelo fato de uma mulher querer trabalhar, há também um grande e intimidador teto de vidro em diversas áreas de atuação. São profissões e especializações nas quais o gênero feminino não é reconhecido, o pay gap é de doer, a cultura de assédio parece ser a regra do jogo, e conseguir alçar cargos mais altos soa como um sonho impossível.

Dar luz a algumas delas é uma tarefa importante. Primeiro, porque o problema precisa ser exposto, não importa quantas vezes, até que deixe de ser problema. Depois, porque a gente realmente espera que todos os números e as histórias que vamos mostrar a seguir se tornem motivos de inspiração e força para mulheres de todas as áreas.

Apesar de muito conhecido por suas crônicas “vida real”, Nelson Rodrigues também era um comentarista de futebol extremamente sagaz. Nos textos que produzia, deu origem a termos e expressões usados até hoje — “complexo de vira-lata” é uma das mais famosas. O mérito do escritor foi entender como esse esporte ocupa uma parte importante na formação da sociedade brasileira, sendo o reflexo de diversos comportamentos que adotamos em outras esferas da vida.

E é pelo lugar que o futebol possui que escolhemos o esporte como ponto de partida para falarmos sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres em se firmarem de uma forma igualitária em profissões ocupadas em sua maioria por homens. Afinal, é difícil existir um exemplo melhor para ilustrar as diferenças que podem existir quando falamos de gêneros diferentes executando o mesmo serviço.

Para qualquer pessoa que saiba um pouco sobre o mercado da bola no Brasil, não é novidade que o futebol feminino sempre viveu à sombra do seu irmão mais rico. Mas quando comparamos os benefícios das duas maiores estrelas de cada modalidade (Neymar Jr. para o masculino e Marta para o feminino), a gente consegue ter uma dimensão dessa distância:

O que a gente quer não é eleger quem merece o maior salário, mas sim propor a seguinte reflexão: como é possível que o mesmo esporte, com as mesmas regras e times, lide com realidades tão diferentes? Sim, porque toda a estrutura financeira que os apoia — do patrocínio ao acesso a bons locais para treinamento — é desigual.

“Hoje, aqui no Corinthians, a gente tem uma melhor condição de estrutura e salário, mas não chega a 5 o número de clubes que oferecem esse mesmo nível. Eu mesma já passei por clubes que tinham material precário e uma remuneração baixa, além de conhecer jogadoras que tinham trabalhos paralelos para conseguirem se manter na profissão”, explica Marcela Nascimento, meia-atacante do time paulista.

Quase 100% da escala que o futebol masculino possui é gerada pelo patrocínio de empresas e emissoras, que compram os direitos de utilização da marca e exibição dos jogos. Ou seja: caso existisse mais interesse das companhias em apoiar iniciativas relacionadas ao esporte, mais times e campeonatos seriam criados. Só que o principal entrave para o crescimento do futebol feminino é que esses mesmo patrocinadores não veem o mesmo potencial de lucro que encontram no masculino:

“Eu bato na porta dos clientes, sento com quem decide e explico: “olha, eu tenho audiência [de TV], prazo e preço”. E a resposta que recebo é sempre a mesma. Que eles não querem e não gostam [da modalidade]”. Alfredo Carvalho, diretor comercial da Sport Promotion, empresa que negocia a veiculação dos jogos com os canais de TV, em entrevista ao Nexo.

Já existem algumas iniciativas que tentam concretizar o primeiro passo, que á atrair patrocínio para o futebol feminino. Uma delas é o #CaleoPreconceito (assim mesmo, com hashtag), um projeto criado pelo Corinthians e apoiado por empresas como Nike e Positivo para incentivar mais marcas a se envolverem tanto com os times como com as jogadoras.

Uma característica une as mulheres do esporte às atletas do escritório: nos dois casos, o esforço feminino precisa torná-las excepcionais, para que sejam alçadas a uma posição de liderança.

Um relatório recente do Fórum Econômico Mundial revela que há apenas 5% de mulheres em posições de liderança na indústria da tecnologia.
Um distância que vai demorar mais de 100 anos para ser reduzida.

Para empresas que possuem missões tão nobres quanto “conectar o mundo” e “tornar a informação acessível para melhorar a vida de todos”, é surpreendente que exista uma espécie de “barreira invisível” que dificulta tanto a contratação de profissionais quanto sua promoção aos cargos de chefia.

O mercado de tecnologia é um ambiente hostil às mulheres e não faltam exemplos para confirmar esse ponto. A gente já comentou alguns deles aqui. No entanto, levando em conta que os diversos tipos de assédio entram numa esfera inadmissível, o mais assombroso é ter profissionais exercendo a mesma atividade com salários diferentes.

Depois de muito barulho e cobrança, grandes empresas começam a se mover para equiparar as condições entre homens e mulheres. Em maio, o Google divulgou um documento no qual explica seu esforço para extinguir o pay gap entre seus funcionários. E considerou o assunto resolvido.

Sabe quanto a gigante das buscas gastou no processo? USD 270 mil. Estamos falando de uma empresa de bilhões de faturamento. Logo, não sai caro fazer uma política de equiparação salarial funcionar.

O Google defende que já realiza suas contratações dentro de uma política de igualdade e que a análise só apontou disparidades pontuais. Por falar no assunto, páginas sobre diversidade e inclusão viraram obrigatórias para as principais companhias do setor. Só que, apesar das fotos e frases escolhidas a dedo pelo time de PR, o conteúdo dos dados demográficos em si não deveria ser motivo para orgulho algum. A inclusão do discurso, simplesmente, não se vê nos números.

Nenhuma das companhias apontadas já teve uma mulher ocupando o cargo de CEO


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Se os dados não forem suficientes para provar um ponto, vamos reforçar: há, comprovadamente desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Assumir essa situação é o primeiro passo para atacar o problema. E, tão importante quanto, é debater o assunto — mesmo naquela festa de família. Mesmo que seja necessário explicar, desenhar e ter links “na manga” para argumentar. Mesmo que você vire a “pessoa chata”.

Mais duas informações, caso você precise:

1) Uma pesquisa da Kauffman Foundation revela que as companhias de tecnologia lideradas por executivas têm crescimento e retorno de investimento maior do que as lideradas por homens.

2) Forbes reporta que as empreendedoras conseguem produzir 20% mais receita do que seus equivalentes masculinos em startups. Isso, continua ao estudo, apesar de receber 50% menos capital de investimento.

A escalada feminina na academia também parece mais longa. Em seu artigo “As desigualdades de gênero na Carreira Acadêmica no Brasil” socióloga Marília Moschkovich argumenta que as chances das mulheres chegarem ao topo na carreira de pesquisa são menores do que as de seus colegas. A pesquisadora tomou como base os quadros acadêmicos da Unicamp, uma das principais instituições públicas do país e líder em pesquisa no cenário nacional.

A Universidade de Campinas tem 38% de seu corpo docente composto por professoras. Já o espaço universitário do País conta com um índice um pouco maior: 45% do ensino superior é feminizada (termo usado pela pesquisadora). No entanto, a velocidade e proporção com que as mulheres atingem destaque na carreira sugere que há entraves — algo como um verdadeiro firewall — para ascensão das pesquisadoras.

Tomamos como exemplo o nível mais alto da pesquisa acadêmica na Unicamp, chamado MS6:

A instituição conta com 73,8% de homens contra apenas 26,2% de mulheres ocupando tais posições.

Mesmo nas disciplinas em que há uma grande presença de mulheres, essa quantidade não dá nenhuma vantagem para as mulheres chegarem à liderança, segundo o levantamento. Com uma carreira acadêmica mais competitiva a cada dia, não há nenhum indicativo de que essa barreira será superada sem a ajuda de políticas de inclusão e diversidade.

Divulgue isso então
Os bastidores do (nem tão) glamouroso mundo da publicidade

Antes de tudo, alguns dados sobre o mercado:

O Grupo Planejamento fez um vídeo, para tentar ilustrar as histórias por trás dos números acima. Para dar uma ideia do tom, o YouTube avisa que ele possui “conteúdo impróprio para alguns usuários. Esses foram alguns dos depoimentos que mais nos chocaram, envolvendo mulheres:

“Por inúmeras vezes, o diretor da criação e de produção já bateu nela dizendo: é de uma bunda assim que precisamos aqui. Chorei todas as vezes que isso aconteceu. Contei no RH, mas o RH disse que deveria agradecer por eles gostarem de mim.”

“Num fechamento de um grande negócio o diretor olhou para mim e disse na frente de todos que, como ele havia ajudado a fechar o negócio, eu deveria dar uma chupadinha no pau dele.”

“Meu chefe direto costumava me chamar para um lugar afastado do time para que ninguém ouvisse o que ele dizia. Daí ele me criticava, me colocava para baixo, me proibia de interagir ou falar de trabalho com outros gestores da agência para não aparecer. Ao mesmo tempo, me pedia para fazer o trabalho dele. Mesmo que fosse de final de semana e mandar para o e-mail pessoal, para que parecesse que ele mesmo havia feito.”

“Ser mulher e gay já me expôs a muita situação desconfortável. Um cliente, sabendo que eu queria ter filhos, disse: eu me ofereço para ser doador de sêmen, mas só se for pelas vias naturais. (…) outro diretor disse: assim que vc acabar com essa palhaçada (se referindo ao meu relacionamento com outra mulher), me avise para eu dar um jeito em você.”

“Quando meu diretor de criação veio me avisar que eu trabalharia pelo oitavo final de semana seguido. Eu comecei a chorar, alegando que estava exausta. Nesse momento, ele virou para um colega de trabalho e disse: por isso que não dá pra contratar mulher. Mulher chora, não aguenta o tranco.”

Depois de você ler tudo isso, a gente quer lembrar o que falamos logo no começo deste e-mail. A ideia é mostrar o quão injusta é a realidade de diferentes áreas e de diferentes profissionais. Tudo com a esperança de que esse compilado de dados e depoimentos consiga mostrar o quão urgente é a necessidade de começarmos a dar visibilidade e representatividade às mulheres. Não só nos campos de atuação citados acima, mas em todos.

O que vemos em muitos casos é que o gênero feminino acaba recebendo a culpa pela desiguldade. Como no caso da gincana impossível descrita logo no começo deste texto todo.

O cara que grita “Nessa área sequer tem mulher por causa dessas coisas” é o sujeito que acha em nós uma maneira de redirecionar a culpa por anos de repressão e preconceito. Ele é cego para o fato de que, na corrida descrita lá em cima, largamos depois dos homens por conta de toda uma construção cultural.

Mesmo assim, não somos menos capazes. Conseguimos, com muita luta e ignorando os “fiu-fius”, nos igualar em conhecimento, em estudo, em inovação, em sucesso. O que é injusto é isso ser desprezada, ainda por conta dessa velha e ultrapassada construção cultural. É injusto sermos peito e bunda, sermos encaradas como “café com leite”, não sermos ouvidas e celebradas quando merecido. Só estamos querendo tratamento igual. E pagamento igual também.

Agora, pare e reflita.

Quantas vezes você já assistiu a um jogo de futebol da seleção feminina? Quantas profissionais que trabalham ao seu lado você já ajudou? Seja dando apoio moral, conselhos de carreira ou mentoria, censurando comentários machistas e que nada tem a ver com o ambiente corporativo. Esse suporte é extremamente importante. Sheryl Sandberg, a COO do Facebook, fala bastante sobre o assunto em seu livro Lean In. É com uma frase dela que fechamos o e-mail de hoje:

“Quanto mais mulheres ajudarem umas as outras, mais nós nos ajudamos. Agir como um grupo produz resultados.” Ela levanta a bola ainda para outra necessidade desse suporte:

“Qualquer grupo de apoio tem de incluir homens, porque muitos deles se importam com a desigualdade de gênero tanto quanto mulheres.”

Marie Curie é uma newsletter que traz conteúdo para mulheres. Toda semana, discutimos algum tema ou trazemos uma entrevista que tenha impacto na maneira como você trabalha, se posiciona e se relaciona com a sociedade.

A versão original dessa matéria foi publicada em 3 de maio de 2018. Para se inscrever e receber um e-mail nosso todas as quintas-feiras, clique aqui.

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