Imagem não determina valor

Mônica Wanderley
Marie Curie News
Published in
12 min readApr 23, 2019

Quando a beleza aprisiona

Um sério problema de circulação nas pernas seria motivo mais do que o suficiente para que Elisa preferisse não usar sapatos de salto alto no trabalho. Mas nem mesmo o risco de embolia ou a necessidade de vestir meias de compressão quase todos os dias faziam com que ela trocasse os scarpins e as sandálias anabela por sapatilhas nos eventos que organizava. “Eu me sinto melhor assim”, ela repetia. Os modelos comprados eram os mais confortáveis possíveis. Mesmo assim, aqui e ali, Elisa precisava se sentar para tentar controlar a dor que sentia nas pernas.

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Segunda-feira, 6h30 da manhã. Dentro do ônibus 011 — Metrô Armênia, Luciana repete sempre o mesmo ritual. Saca da bolsa o kit de maquiagem e começa a passar a base e o corretivo para disfarçar olheiras e pequenas marcas do rosto. É o que dá para adiantar dentro do balanço da condução. O rímel e o delineador, que precisam de mais atenção, ficam para a parte do trajeto feita pelo metrô mesmo. Dona de uma rotina corrida, emendando a faculdade depois do trabalho, Luciana precisa se organizar para conseguir dormir um pouco mais pela manhã. A roupa é escolhida sempre na noite anterior e a maquiagem fica para a 1h30 que ela gasta no transporte.

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“Só preciso ir ao banheiro rapidinho”, é a frase que Leila repete, depois de algumas refeições, quando está em vias de viajar para encontrar o namorado, que mora na França. Durante coisa de um mês antes de entrar no avião, ela assume sua versão mais fitness. Exercícios todos os dias, dietas low carb e, de vez em quando, “só quando precisa”, decide vomitar parte do almoço ou do jantar.

Como você deve ter percebido, o ponto que une essas três histórias é o espaço que a preocupação com a beleza ocupa na rotina das mulheres. Deve ser difícil encontrar alguém que não tenha um relato assim para contar, seja de um jantar a que não foi porque “não tinha roupa”, do almoço que deixou de comer para ir à depilação ou a alegria que sentiu por ter conseguido um encaixe no salão para se arrumar para um casamento. Essa rotina está tão inclusa na nossa vida que a gente nunca pensa por que investimos tanto tempo e energia com a estética.

Não que seja errado. Ou que seja um problema. Muito pelo contrário: se sentir bonita significa auto-estima. Significa olhar para o espelho e ficar feliz com o que está ali. Significa, sobretudo, viver bem consigo mesma. O ponto que a gente quer levantar aqui é que “ser bonita” se tornou sinônimo de muita coisa: cabelo liso, tamanho 36, pele perfeita. Mas por quê?

Lado bom: há uma resposta para essa pergunta

Lado não-tão-bom: ela não é nem um pouco legal.

A gente não vai entrar na discussão sobre como o conceito de beleza foi formado e alterado ao longo do tempo. Platão, Fibonacci e uma porção de outras mentes encontraram na matemática e na geometria a fórmula do que era belo. Proporção e harmonia entre formas era a regra. Mas em pleno ano de 2018, já sabemos que esse conceito não se aplica à gente.

Pulamos, assim, para a década de 1990, com o livro “O Mito da Beleza”, escrito pela americana Naomi Wolf. Trata-se de uma das principais obras que ajudam a entender como houve um esforço de diversas frentes da sociedade para colocar a beleza como meta nº1 a ser alcançada pelas mulheres.

“Pesquisas recentes revelam com uniformidade que, em meio à maioria das mulheres que trabalham, têm sucesso, são atraentes e controladas no mundo ocidental, existe uma subvida secreta que envenena nossa liberdade: imersa em conceitos de beleza, ela é um escuro filão de ódio a nós mesmas, obsessões com o físico, pânico de envelhecer e pavor de perder o controle.”

O mito da beleza, página 12

Wolf explica que, após a Segunda Guerra Mundial, a decisão tomada por milhares de mulheres brancas e de classe média de continuar trabalhando, mesmo com o retorno de seus maridos — escolha que nunca foi dada às mulheres negras e pobres, vale frisar — não foi vista com bons olhos por diversas frentes da sociedade. Era mais cômodo manter as coisas como sempre foram.

Na primeira metade do século 20, o público feminino havia derrubado diversas estruturas que seguravam o status quo até então, alcançando novos direitos (como o voto) e se libertando do estereótipo Amélia-mulher-de-verdade. Em busca de um freio que interrompesse a série de avanços alcançados e trouxesse alguma “estabilidade” na dinâmica social, empresas, indústrias e órgãos de mídia voltaram seu foco a um dos poucos dogmas que ainda assombravam o imaginário feminino e que poderia ser usado para barrar os anseios por mais mudanças: a preocupação com a beleza. É o que defende Wolf.

Mesmo 28 anos após lançamento do livro, essa história não só continua a existir, como foi reforçada. Apesar de haver um padrão de beleza mais aceito no Ocidente (branca, alta e magra, de preferência com cabelos louros e olhos claros), a indústria e a sociedade souberam se adaptar às peculiaridades regionais, criando “Mitos” específicos para cada nação. Aqui vão alguns deles:

Índia

Num país formado, quase majoritariamente, por pessoas morenas ou negras, há uma grande obsessão pelo branco. Ser caucasiano significa ser tratado melhor e receber mais oportunidades de emprego. Assim, fazia sentido para a indústria trabalhar essa insegurança. Diversos cremes prometem clarear a cútis, veiculando na televisão propagandas (como essa e essa) em que a mensagem é direta: quanto mais clara a pele, maiores suas chances na vida.

Japão

De acordo com um relatório divulgado pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS na sigla em inglês), em 2016 mais de 1,3 milhão de cirurgias foram realizadas no Japão e em outros países asiáticos para “corrigir”as pálpebras. O objetivo é tornar os traços mais parecidos com o dos ocidentais — sobretudo, do Hemisfério Norte. Na China e na Coreia do Sul, pais pagam para que suas filhas passem pelo procedimento o mais cedo possível. O tom claro de pele também é outra característica extremamente valorizada.

Estados Unidos

O país campeão de cirurgias plásticas parece não querer abandonar a coroa tão cedo. Lipoaspiração (remoção da gordura do corpo), aumento dos seios e microdermoabrasão (uma espécie de esfoliação no rosto) são os procedimentos mais comuns na terra de Hollywood e das celebridades. Em 2016, mais de 1,2 milhão de aplicações de Botox foram feitas por lá.

Brasil

Somos o segundo colocado na lista de países que mais realizaram cirurgias plásticas no mundo, com quase 435 mil procedimentos, em 2016. A maioria deles tem como objetivo realçar o corpo. Um fator que chama bastante a atenção de pesquisadores internacionais sobre o tema é o grande número de brasileiras que pagam caro por operações — um implante de silicone feito por um bom cirurgião dificilmente sai por menos de R$ 10 mil — , mesmo com cerca de um quarto da população vivendo abaixo da linha da pobreza.

No e-mail da semana passada, falamos sobre como somos quase sempre educadas, seja pela família ou pela sociedade, a entender que nosso capital social está na beleza . Se ela garante casamento, status e uma boa carreira, parecer mais bela torna-se, assim, missão de vida, uma tarefa diária para a qual, tantas vezes, não temos tempo, dinheiro ou mesmo paciência para tocar. Mas tocamos mesmo assim.

O conceito de beleza, como o temos hoje, está extremamente associado à juventude. Não é à toa que, conforme envelhecemos, vemos os ídolos de nossa época serem substituídos por outros, mais novos, que sequer reconhecemos. Se estamos falando de mulheres, então, a escassez de representantes com mais idade na mídia e na indústria que vende a beleza é bem maior. Daí fica a questão: se beleza = juventude, mas juventude não dura para sempre, por qual processo passam as mulheres conforme os anos se vão?

Em “A Bela Velhice”, a antropóloga Mirian Goldenberg fala sobre envelhecimento. Na capa do livro, ela exibe o próprio pescoço — uma parte que fica sempre oculta quando o objetivo é disfarçar a idade. “As mulheres que mais sofrem são as fixadas na aparência”, disse ela nesta entrevista sobre a obra. É o que afirma também a psicóloga Lilian Andrés, com quem conversamos sobre o assunto por um bocado de tempo essa semana:

“Quando chega aos 50 anos, a mulher vê tudo em seu corpo mudar. As mulheres que não cultivaram outras questões, outras habilidades mesmo, passam por um momento de muito sofrimento. Eu tenho amigas que estão envelhecendo felizes e outras que não estão. Algumas reclamam de entrar num lugar e não serem notadas pelas pessoas da mesma maneira que eram antes. Outras, contam como usavam a própria beleza para conseguir escapar de uma multa, por exemplo, e como não podem mais fazer isso hoje — um exemplo claro de como instrumentalizamos a beleza e a juventude. Para mim, o único caminho é transcender isso tudo, construir uma identidade, gostos, participar de organizações, se juntar a causas, fazer excursões, se filiar a um partido político. Porque é isso o que a beleza tem de fazer, ela tem de transcender. E algo só transcende se for de dentro para fora.”

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Longe de nós querermos bancar a auto-ajuda (apesar de que auto-ajuda é sempre importante). Mas vamos lembrar aqui de uma das quotes mais bonitas que vimos recentemente, do filme Extraordinário. Na cena, a mãe Isabel conversa com o filho, que sofre da síndrome de Treacher Collins. Ela tenta consolá-lo, depois de um dia difícil para ele na escola:

Apontando para o coração do menino, ela diz: “esse é o mapa que nos mostra aonde vamos”. Com o dedo indicador na direção do próprio rosto, conclui: “e esse é o mapa que nos mostra onde estivemos.”

E se existe algo mais bonito e digno de orgulho do que a nossa própria história, a gente realmente não sabe o que é.

Dinalva não se achava bonita e acreditou por bastante tempo que precisava mudar o cabelo para se tornar mais “aceitável”. Ela começou a fazer relaxamento aos 9 anos e recebia muitos elogios quando seus cachos estavam “domados”. No meio deles, havia um ou outro comentário dizendo que ela deveria simplesmente aceitar o cabelo natural.

A ideia de abandonar um procedimento que prejudicava tanto o couro cabeludo, quanto sua rinite só veio depois que o cabelo começou a cair por conta da química. Isso foi até os 20 anos de idade. Para qualquer jovem, deixar de querer parecer “aceitável” pode soar como um pesadelo. Para Dinalva, foi a melhor coisa que ela poderia fazer por sua autoestima.

Já Eligia diz que não liga tanto para os quilinhos a mais. As idas à academia são para satisfazer a si própria. Garante que sente prazer em se cuidar, em estar mais disposta e que morre de medo de ter dores no corpo, por conta do sedentarismo. E sorri ao admitir que não se sente mais pressionada a seguir padrões de beleza. Nas palavras dela:

Os dois depoimentos mostram relações diferentes com a beleza ou com o que é se sentir bonita. No final, apontam que a maior beleza pode ser aceitar quem você é. Ok, uma ótima mensagem para o crescimento pessoal e até meio clichê também. Mas, no fim das contas, não responde à pergunta que ainda ecoa: Por quê?

A busca pelo padrão, pelo normal e pelo belo não estaria presente no cotidiano de pessoas tão diferentes como Eligia e Dinalva (e todas as outras mulheres que participaram desta edição) sem beneficiar alguém. O que significa que tem gente lucrando com a sua insegurança.

$iga o dinheiro

A chamada indústria da beleza movimenta cifras altíssimas globalmente. Em 2017, foram USD 445 bilhões. E a gente sabe: nem sempre as corporações jogam limpo. Quantas campanhas incentivam o uso de cremes, procedimentos estéticos ou a busca por um rosto ou corpo que só pode ser atingido via Photoshop/cirurgia plástica? Muitas. Durante bastante tempo, isso passou batido, era comum demais.

Até que alguém notou que a Julia Roberts, com seus 40 anos, não tinha uma rugazinha, numa propaganda de um creme anti-rugas. Ou que a Gisele Bündchen perdeu o umbigo numa capa de revista, depois de a foto passar por “leves” retoques.

São tempos de redes sociais, de mulheres donas de suas vidas, que escolhem no que gastar seu dinheiro. Uma hora as empresas iam ser forçadas a largar mão de tentar nos vender essa ideia irreal de perfeição e abrir os olhos para o fato de que: não somos todas iguais. Depois de muito barulho, estamos vendo mudanças em marcas, obras, veículos e empresas. Mas, ainda assim, é raro encontrar:

  • comerciais com idosos sem que o tema seja saúde (ou a falta dela);
  • apresentadoras de TV/protagonistas de novela negras;
  • modelos plus size em propagandas;

Com o crescimento dessa demanda por diversidade, surge um novo filão e um momento de ajuste. Como disse o CEO da multinacional de cosméticos francesa Coty, Camillo Pane:

“A indústria da beleza está se tornando complexa. Nossos instintos são de evitar o que é complexo. Mas ou nós abraçamos isso ou não há como se manter”.

É aqui onde vemos um certo oportunismo. Hoje, vemos marcas gigantescas colocando mulheres de variadas etnias e biótipos em seus comerciais. Sabe aquele comercial que diz para a mulher que ela precisa se aceitar e que é legal ser diferente? Então. Tudo muito bom, muito legal, mas em alguns casos dá para ver que as empresas estão só tentando pegar uma onda que elas sequer entendem. Um exemplo? As embalagens em diversos formatos que uma fabricante de cosméticos lançou para ~homenagear~ diferentes corpos femininos.

Outro ponto é que os comerciais ainda se valem da mesma fórmula para vender: gerando ansiedade em relação a como somos ou como nos vemos. Se antes nós tínhamos:

Mulher + produto = atingir o padrão de beleza.

Agora, temos:

Mulheres + produto = aceitação de quem você é.

Nasce, assim, uma nova demanda em relação à mulher: se sentir bem.
Ok, parece que estamos problematizando demais a coisa. Mas dê uma chance para a gente explicar. Pense na última propaganda voltada para o público feminino a que você assistiu. Há, de certo, um fator em comum: uma personagem feliz e serena. Como se diz nos dias de hoje: plena. Seja cozinhando para a família, num break do trabalho ou trocando o absorvente.

A diferença entre o que tínhamos antes e agora é a variedade de tons de pele, tamanhos e tipos de cabelo — o que é um avanço gigante. Mas vamos mais longe? E se pudéssemos ser retratadas como o Brad Pitt neste comercial para a Toyota? Ou como a “Pessoa Mais Interessante do Mundo”, da cerveja Dos Equis? Ou ainda, por que não vemos a versão oposta de comerciais como este, com Claudia Raia fula da vida?

Marie Curie é uma newsletter que traz conteúdo para mulheres. Toda semana, discutimos algum tema ou trazemos uma entrevista que tenha impacto na maneira como você trabalha, se posiciona e se relaciona com a sociedade.

A versão original dessa matéria foi publicada em 5 de abril de 2018. Para se inscrever e receber um e-mail nosso todas as quintas-feiras, clique aqui.

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