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Marie Curie News
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10 min readFeb 21, 2019

Os desafios enfrentados pelas mulheres no universo gamer

As lan houses eram um ponto de encontro comum para boa parte dos adolescentes no começo dos anos 2000. Além de oferecerem acesso de banda larga — conexão que muitos brasileiros ainda não possuem — os visitantes desses oásis tecnológicos podiam passar horas entretidos em novidades como a internet, softwares de mensagens e, é claro, jogos para computador. Games de tiro ao estilo Counter Strike ou RPGs do tipo Warcraft foram a porta de entrada para muitas pessoas. Só que, caso o melhor jogador de uma dessas partidas em conjunto fosse uma menina, ela muito provavelmente precisou deixar seu microfone mudo, manter um “nick” discreto e não responder mensagens no grupo. Ao que parece, o ego masculino é frágil demais e não é capaz de superar derrotas para uma garota.

É bem verdade que muita coisa mudou de lá para cá. Os tais jogos se transformaram em categorias de eSports — o termo é utilizado para definir competições de jogos eletrônicos disputadas, geralmente, por profissionais. As oportunidades desse mercado ainda não foram completamente exploradas, mas já devem movimentar USD 1 bilhão em 2019, segundo um estudo da agência NewZoo. Ao mesmo tempo em que expande seu alcance, a indústria atrai a atenção de franquias dos esportes considerados tradicionais. E também precisa lidar com a mesma questão do parágrafo anterior: como manter um ambiente saudável para as mulheres?

Apesar dessa história se desenrolar em escala global, as garotas ainda precisam se esconder para não sofrerem bullying. Infelizmente, o mundo virtual ainda é dominado por meninos. Não fosse tão extrovertida, uma dessas histórias poderia representar a trajetória de Nicolle “CherryGums” Merhy. A ex-pro player de Rainbow Six Siege, estudante de Direito, youtuber e CEO do time Black Dragons teve que se acostumar com comentários direcionados apenas aos seus atributos físicos no começo da carreira. Como se sua prioridade fosse apenas “embelezar” as partidas.

O excesso de comentários tóxicos é só uma das muitas barreiras que as mulheres precisam enfrentar. Não se importar com os haters é algo que qualquer jogadora aprende cedo. E a cobrança excessiva também. Pense que, enquanto não é problema para um homem começar suas partidas no modo “normal”, qualquer garota querendo se inserir no cenário profissional sabe que qualquer versão abaixo do “hard” não é uma opção.

Em 2016, o Overwatch (jogo de tiro de primeira pessoa) despontava como uma sensação mundial e, na Coreia do Sul, esse tipo de disputa é levada muito a sério. Com apenas 16 anos de idade, Kim “Geguri” Se-hyon já tinha uma pontaria precisa o suficiente para ser um dos destaques de seu time em campeonatos amadores. Acontece que sua mira era boa demais. Especialmente para uma menina. A jovem teve seus talentos questionados por milhares usuários que a acusaram de trapacear no jogo. Ela, então, foi convidada para uma demonstração ao vivo de suas habilidades e chegou a pedir desculpas, dizendo que “nem sabia trapacear”. Foi aí que ela se sentou no computador, escolheu seu personagem. E matou a pau.

Ok, tentar obter vantagens em qualquer competição é comum. No entanto, chama a atenção que outros jogadores não precisam demonstrar que seu desempenho é legítimo. Essa “tendência” a questionar se ela é “boa mesmo” tem que acabar.

Essa mentalidade leva à demonstrações antidesportivas , como a que deu origem às discussões para essa edição. O time feminino Vaevictis fazia sua estreia na liga russa de League of Legends como a primeira equipe com um line-up todo feminino a jogar uma liga principal do eSport. Só que o momento foi marcado por um tom de desrespeito do RoX, time adversário: todos os jogadores baniram um herói suporte. Acontece que existe uma “piada” dentro desse universo de que mulheres só sabem jogar como suporte. A provocação, que já seria questionável dentro de uma partida entre amadores, deveria ser inaceitável num cenário profissional.

Como já deu para perceber, as dificuldades enfrentadas pelas pro players para progredir num ambiente tão machista não são diferentes das encaradas por mulheres em outros contextos da vida corporativa. Acontece que, no caso dos eSports, estamos falando de produtos que têm donos — há marcas que respondem por cada um dos campeonatos. Portanto, essas empresas também precisariam ser responsabilizadas pelas atitudes de seus “empregados”.

“CherryGumms” participou de uma campanha global My Game, My Name, na qual mulheres pediam para as publishers dos jogos tomar providências não só contra o machismo, mas qualquer atitude preconceituosa na comunidade formada por seus títulos. Uma das queixas é de que o sistema de denúncias não é levado a sério por essas companhias. Segundo Merhy, “no mundo dos games aquele botão [de denúncia] não serve para nada”, comenta.

Algumas respostas estão sendo dadas: nos últimos anos, surgiram campeonatos exclusivos para atletas femininas. Em tese, esse tipo de competição mantém um ambiente mais saudável e atraí novos talentos. Os críticos dessa medida, no entanto, apontam que essa não é solução definitiva. Afinal, os torneios viram mais um “cantinho de lan-house”, sem o devido destaque e importância financeira.

Mas, espera aí, melhor pedir a opinião de alguém que entenda realmente do riscado. Com a palavra, a apresentadora do Voxel, Kika Martini.

“Pra que torneio feminino? Não tem força física envolvida, não faz nenhum sentido!”. É inevitável: muita gente pensa assim quando fica sabendo da existência de ligas exclusivamente femininas nos eSports. Não dá pra culpar: pensando friamente, faz mesmo sentido. Mas, ainda assim, as ligas femininas existem e são, infelizmente, extremamente necessárias para as mulheres.

Deixando claro: pouquíssimos campeonatos principais são restritos aos homens. A grande maioria é, na teoria, misto — mas não é o que vemos na prática. É possível contar nos dedos a quantidade de mulheres que já competiram com homens nos torneios principais. E não importa o jogo: Starcraft, League of Legends, CS:GO, Dota 2 — mulheres raramente participam desses torneios.

Sasha “Scarlett” Hostyn, uma das poucas representantes femininas no Starcraft 2, vence a IEM PYEONGCHANG 2018

Mas, se aos olhos dos games homens e mulheres são iguais, por que isso acontece? É uma questão de oportunidade que começa muito antes dos torneios. Jogos sempre foram vistos como “coisa de menino” e isso se refletiu (e ainda reflete) na educação de muitas meninas. Falo por mim — enquanto meus amigos passavam quantas horas quisessem na lan house jogando Counter-Strike, meus pais só me deixavam ir se uma outra menina me acompanhasse, e sempre com horário restrito. E mesmo assim me considero sortuda, conheço muitas mulheres que na adolescência nem em casa podiam jogar videogame.

Tudo isso colabora para que, desde cedo, esse meio seja muito mais natural para os homens do que para as mulheres. Em pleno 2019, mulheres envolvidas na comunidade gamer (e nerd como um todo) ainda são vistas como “alienígenas” — e muitos homens fazem questão de deixar claro: não somos bem-vindas.

Ainda assim, algumas meninas e organizações batem no peito e encaram o desafio — e cada vez que isso acontece, o papel dos torneios femininos fica mais claro. No Brasil, tivemos um caso recente: em março de 2018 o time feminino da Vivo Keyd de CS:GO foi convidado pela ESL Brasil para participar da qualificatória da LA League, um dos principais torneios latino americanos da temporada. As meninas não eram novatas, tinham acabado de voltar de torneios internacionais e muitas jogadoras estavam no cenário há anos, mas mesmo assim a escolha teve vários comentários negativos — muitos citando que com certeza tinha um time masculino que merecia mais o convite.

“Que legal! Agora convites não são baseados em mérito e sim em seu gênero, não culpo tanto a ESL porque a próprio público INFELIZMENTE quer algo ridículo assim. Decepcionado anyways..”

“Se a intenção era “LACRAR”, vocês tao de parabéns.”

A acusação “é só marketing” também aparece constantemente quando uma line-up feminina é anunciada. A impressão que passa é que mulher nos games só é merecedora se for a melhor, se conseguir massacrar todos os outros times . Mas como fazer isso, se não temos o mesmo espaço para começar?

É aqui que os torneios femininos cumprem seu propósito: criar um ambiente garantido, seguro e acolhedor para as mulheres que querem começar no competitivo. Um torneio que permita que as mulheres aprendam e ganhem experiência, sem julgamentos excessivos. E, como disse a jogadora profissional de CS:GO, Pamella “pan” Shibuya na coletiva de imprensa do time feminino Athena’s e-Sports, também servem como exemplo e inspiração.

“Se eu não tivesse visto meninas jogando em torneios, nunca teria cogitado seguir essa carreira”.

Mas nem tudo são flores. Os torneios femininos são visto com menos prestígio, e, consequentemente, têm premiações menores. Por um lado, é compreensível: a intenção é que ele seja apenas a porta de entrada para as meninas e não o único lugar no qual elas possam competir. Mas, infelizmente, a realidade é outra. Na maioria dos casos, eles ainda são o único lugar que a maioria das meninas encontra para competir.

No momento, temos duas opções — ou insistimos na luta para que as mulheres cheguem nos torneios principais ou brigamos pela valorização dos torneios femininos. Meu desejo é pela primeira, com todos disputando lado a lado. Mas toda vez que as mulheres botam a cara a tapa e aparecem nas ligas principais eu percebo como ainda estamos longe disso.

A luta diária das mulheres por respeito existe em todas áreas, e infelizmente não é diferente nos eSports.

“Porque você é mulher”

“Com certeza é porque está dando para alguém”

“Nossa, joga como um homem”

“Tinha que ser mulher”

Esses são só alguns dos comentários que as nossas entrevistadas tiveram que ouvir durante os gameplays. “As pessoas confundem habilidade com gênero, e não, não é bem assim! Ser homem, mulher ou o que você quiser não interfere na sua habilidade e sim o quanto você treina e se dedica”, dispara Amanda “AMD” Abreu, jogadora de CS:GO há mais de seis anos e profissional nos últimos dois.

Um levantamento recente aponta que o setor de eSports cresceu quase 20% no Brasil. Por aqui, já são mais de 20 milhões de fãs, sejam torcedores ocasionais (quase 12 milhões) ou entusiastas (9,2 milhões) de um determinado time ou modalidade. Considerando apenas o público mais fiel, o país fica atrás apenas de Estados Unidos (22,4 milhões) e China (75 milhões) em número de aficionados.

Mas, até onde vai essa influência? Basta dizer que os donos do New England Patriots e do Los Angeles Rams — os times que disputaram o último Super Bowl — contam com suas próprias equipes na Overwatch League (OWL). O campeonato organizado pela Activision Blizzard teve quase 11 milhões de espectadores acompanhando sua grande final. O que leva muitos analistas de mercado a dizer que qualquer marca que não esteja envolvida de alguma forma nesse universo vai ficar para trás.

Com canais como SporTV e ESPN veiculando partidas de títulos como World of Warcraft, CS:GO, League of Legends e outros, o mercado ganha novos consumidores. Mas não é possível tratar jogadoras apenas como consumidoras. Uma das formas de incentivar a participação no meio é justamente abrir caminho para outras profissionais. E essa é uma missão que a comentarista Ana Paula “Xisdê” Cardoso leva muito a sério.

A especialista faz parte do time que transmite a segunda temporada da OWL no Brasil, campeonato que teve início na semana passada. Ela conta que, mesmo tendo um histórico no game, enfrentou preconceito até mesmo quando achava que estava num ambiente seguro.

Por esse motivo, fazer uma boa transmissão é mais do que uma vitória pessoal para a comentarista.“A representatividade e o exemplo são coisas muito importantes nessas situações, por isso eu levo muito a sério a responsabilidade que é entregar um bom trabalho. Faço isso para mostrar que ser um bom profissional no meio dos eSports não tem a ver com gênero, mostrando a todos que é possível e abrir o caminho para que seja mais fácil para as próximas mulheres que quiserem seguir a mesma estrada”, explica a comentarista.

Uma das dificuldades enfrentadas pela “Xisdê” foi justamente encontrar inspirações: “não havia presença de mulheres fazendo o que faço nesses jogos, então criei meu próprio caminho sozinha. Não foi fácil, mas eu me orgulho disso, pois foi por isso que comecei, para me tornar a mulher que chegaria onde estou. Hoje, conheço diversas mulheres muito inspiradores e dedicadas, jogadoras, community managers, apresentadores e narradoras”, conta.

Se já é visível que a presença das meninas não é mais um “ponto fora da curva” nos jogos, é importante repetir comportamentos saudáveis, esteja você atrás ou não de um monitor. Ah, você é homem e chegou até aqui? Então, leve esse ensinamento para seu próximo gameplay. Se tiver que levar apenas uma frase, fique com esse papo reto da “AMD”:

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