Mulherão da p###a

Mônica Wanderley
Marie Curie News
Published in
11 min readApr 29, 2019

Um papo sobre autoconfiança

“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, canta Caetano Veloso — em sua voz, ou na de Gal Costa, para ficar entre as representantes femininas. O problema da autoconfiança é reconhecer que a dor é dor para poder enxergar a delícia.

Os seres humanos estão entre as únicas espécies que possuem autoconsciência. Isso significa, segundo o conhecimento científico, a capacidade de se reconhecer como um indivíduo à parte de seu ambiente e das outras pessoas. É a forma como uma pessoa sabe e entende a própria existência corporal, seus sentimentos, crenças, necessidades e respostas da sociedade à sua volta. E estamos falando de tudo isso porque o tema de hoje é extremamente pessoal:

A.U.T.O.C.O.N.F.I.A.N.Ç.A

Se a consciência de sua própria existência já é um tema que ainda não está completamente elucidado, talvez a autoconfiança seja ainda mais delicado de abordar. Principalmente, porque a tal da confiança em si mesmo está diretamente ligada à autoestima e à autoaceitação. Ou seja, a forma como você se entende e os sentimentos que possui em relação a si mesmo. Os conceitos são tão próximos que, muitas vezes, são até confundidos. Em 2008, os psicanalistas Friederike Potreck-Rose e Gitta Jacob definiram que a autoconfiança é um dos quatro pilares da autoestima.

“Trata-se de uma postura positiva com relação às próprias capacidades e desempenho.”

Ou seja, passa pela convicção de saber fazer alguma coisa, de fazer essa coisa bem feita, conquistar algo especial por isso ou suportar as dificuldades que podem vir. Tudo isso sem sentir seu ego abalado. Em outras palavras, enquanto a autoestima tem um conceito mais genérico, relacionado ao gostar de si mesmo, a autoconfiança está ligada às competências pessoais. Já a autoaceitação é a paz de espírito que uma pessoa sente ao compreender o que ela é.

“Quando conhecemos a nossa história pessoal, sabemos de onde partimos. E, ao desenvolver essa percepção, fica mais fácil caminhar para onde queremos chegar. Por isso, é importante valorizar sua origem, família e as escolhas tomadas ao longo da vida”, resume a psicóloga Lilian Andrés.

DISCLAIMER: Não é uma questão de beleza.

É arriscado confundir autoconfiança com beleza — é mais uma questão de postura. Diante da vida, diante dos outros. Mas, principalmente, diante de si mesmo. Porque, no fim do dia, só você pode dizer o quanto se esforçou por algo. O quanto já sacrificou de tempo para conquistar aquela promoção. E, da mesma forma, só você entende a frustração de ter aquela mesma promoção negada, porque um colega era mais amigo do chefe.

Assim como outras características que formam a nossa personalidade, a autoconfiança acaba sendo muito influenciada pela forma com que a gente se relaciona. Sejam amigos, família ou no campo amoroso, fica muito mais complicado se reconhecer como alguém de valor se as pessoas ao seu redor vivem te diminuindo ou duvidando das suas habilidades.

Existem diversos estudos que mostram como a percepção alheia é capaz de alterar a imagem que fazemos de nós mesmas. Sem falar que esse é um sentimento praticamente universal: quem nunca ao menos pensou em agir diferente da sua personalidade, seja para tentar ser aceita naquele grupo legal na escola ou para “manter a paz” dentro de casa? É, claro que a gente acaba mudando ao longo da vida, mas o importante é que essa transformação parta de dentro. Quando ela é influenciada por fatores externos, é quase certo de que, por mais esforço investido, ela acabe se tornando um trabalho inútil — e doloroso.

A autoconfiança nos “blinda” das feridas que podem ser causadas ao tentamos nos encaixar numa situação desconfortável ao mostrar que preservar a nossa essência é uma das coisas mais importantes da vida. Há esferas, como família e trabalho, nas quais muitas vezes a gente precise lidar com pessoas e situações que nos desagradem. Mas ter a convicção de que você está agindo de acordo com a sua consciência ajuda a passar por esses momentos com mais tranquilidade.

E nas relações mais fluidas, como as com amigos, ficantes, namorados e afins, saber o que se quer é uma qualidade essencial para se demorar na vida de pessoas que, no final das contas, não retornam na mesma moeda todo o tempo e afeição que você dedica a elas.

Um dos lugares mais desafiadores para manter a autoconfiança é no trabalho. Ainda mais quando se é mulher — já falamos sobre esse assunto algumas vezes. Eugênio Mussak, escritor e colunista da revista Exame, é taxativo: “Por definição, autoconfiança é a capacidade de a pessoa acreditar em seu potencial. Sem dúvida, uma qualidade importante para a construção de carreiras consistentes e admiradas. Pessoas sem autoconfiança com frequência não realizam simplesmente porque nem sequer tentam. Têm medo de não conseguir”.

Mas, se já é tenso conquistar a tal autoconfiança de forma genérica, pior ainda é chegar nela no local de trabalho, onde o simples fato de se ter nascido mulher gera comentários negativos e preconceito. “Mãe tem que sair mais cedo do trabalho”. “Não dá para ser sincero com mulher que ela chora”. “Mulher não serve para atuar numa área tão dura quanto essa.”

Mussak dá algumas pistas.

Primeiro, a tal autoconfiança é fruto da experiência, que você ganha acertando e errando. “Só não erra quem não tenta, o que nos leva à conclusão que não podemos atribuir autoconfiança apenas aos sucessos alcançados . Ela também é fruto dos inevitáveis insucessos”.

The Confidence Gap

Um estudo recente feito pela Ph.D. Wiebke Bleidorn, da Universidade de Califórnia, mostra que existe uma disparidade no nível de confiança que homens e mulheres sentem sobre si mesmos. Em entrevistas com 985 mil homens e mulheres, de 48 países, a pesquisadora pediu para que eles classificassem a seguinte frase como verdadeira ou falsa:

“Eu me vejo como alguém com muita autoconfiança.”

O que ela descobriu é que a falta de confiança era algo que atingia todas as mulheres. “Independentemente da cultura ou do país, homens têm mais confiança do que as mulheres.” As descobertas de Bleidorn, aliás, foram compiladas num baita mapa interativo, que rankeia o nível de autoconfiança do sexo feminino pelo mundo.

Embora a especialista não tenha conseguido uma resposta exata para a baixa autoconfiança feminina, ela tem algumas teorias. A principal delas fala que as mulheres do Ocidente acabam se comparando muito mais com os homens. Nos países orientais, o sentimento é menor entre as mulheres porque elas costumam se comparar a outras mulheres (entra aqui, claro, o fato de que, em muitos dos países do outro lado do Meridiano de Greenwich, elas enfrentam uma série de restrições).

“Homens tendem a ter posições de mais status e um salário maior, por exemplo, então a comparação é pouco favorável às mulheres.” Ou seja, mulheres afortunadas o suficiente para nascer em culturas, em teoria, igualitárias são vítimas de suas próprias comparações. Ainda mais porque, apesar de todo o avanço do último século, são os homens que ainda são mais recompensados (social e financeiramente) pelo que fazem. Quer um dado? Somente 5% das maiores empresas americanas têm CEOs mulheres. No Brasil, o indicador é um pouco melhor, de 17%. Mesmo assim, está longe de ser ideal.

“Eu costumo ser muito direta no trabalho. Recebi um feedback de que deveria ser mais delicada na hora de falar porque as pessoas achavam que eu estava brava o tempo todo. Depois, eu fui entender que eu só não me comportava do jeito que era esperado de uma mulher. Resolvi que preferia ser direta a ficar medindo palavras para convencer todo mundo de que sou algo que não sou. Homens que são diretos não recebem esse tipo de feedback. Foi um momento em que eu tive de ter confiança de que não estava fazendo nada errado, fora ser eu mesma e não ligar para o que os outros dizem.”

“Achei que tinha de agir como o estereótipo do macho-alfa para dirigir uma equipe. Meu time era quase todo formado por homens e isso me deixava bastante insegura. Resolvi imitar o que havia visto de alguns gestores homens: aquela força na voz, no jeito de me portar até de me vestir. Isso me deixava tão desgastada, porque eu me sentia como alguém que está atuando o tempo todo. Com o tempo, larguei essa máscara e fui encontrando, aos poucos, o meu próprio estilo de gestão — que não é de característico de homem ou de mulher. É o meu.”

Aqui vai um fato não muito novo: mulheres ganham menos do que os homens — são 80 centavos para cada dólar feito por eles. Isso, em grande parte, se deve ao preconceito de gênero do mercado? Sim. Já falamos sobre o assunto noutra edição do MC. Empresas pagam, sim, salários diferentes a homens e mulheres.

Numa escala menor, o dado, porém, também reflete o fato de que mulheres ficam muito mais temerosas na hora de pedir, por exemplo, um aumento. Judith Beck, CEO da organização australiana Financial Executive Women, acredita que as mulheres tendem a ser mais cautelosas em suas carreiras. Alguns depoimentos colhidos por Brown — “eu sinto que tenho de ficar me gabando [para pedir uma remuneração mais alta] e não gosto disso”e “eu prefiro que meu trabalho fale por si mesmo”- são comuns nas rodas de mulheres que discutem suas carreira.

Nesta palestra do TED, a consultora de negócios Casey Brown fala sobre o assunto. Num relato pessoal, conta como decidiu aumentar o preço de seus serviços para seus clientes. Agora vem o plot twist: a empresa de Brown ajuda empresas a aumentarem seus lucros. E ela mesma precisou refletir um bocado antes de conseguir fazer a mesma coisa que oferecia à clientela. “Eu era muito mal paga em relação ao valor que entregava.” Para conseguir se convencer de que tinha de pedir mais por seu trabalho, fez uma série de perguntas:

  • Quais as necessidades dos meus clientes e como eu as atendo?
  • Qual é a minha habilidade única que me torna bem qualificada para atender os clientes?
  • O que eu faço que ninguém mais faz?
  • Que problema eu resolvo dos meus clientes?
  • Que valor eu acrescento ?

Depois de responder a cada uma dessas perguntas, Brown decidiu dobrar o valor que cobrava por seu trabalho. “Mas eu confesso, isso me assustou muito. Eu deveria ser uma expert nisso, mas eu não estava curada. Eu sabia que o valor estava lá. Eu estava convencida que o valor estava lá e, mesmo assim, eu estava com medo da minha própria inteligência.”

Numa outra história, Brown fala sobre uma designer que abriu uma empresa. Quando era questionada sobre o que fazia, ela respondia que tinha “um pequeno escritório de design”. Usava essa descrição, até mesmo, para falar com clientes. Sem perceber, ela diminuia o valor de seu negócio aos olhos de potenciais consumidores — e também se diminuía. Ao notar o quanto esse discurso impactava a sua imagem para os outros (e si mesma), ela decidiu mudar a mensagem. Numa frase final de Brown:

“Ninguém nunca vai pagar o que você vale. Eles vão pagar o que eles pensam que você vale. E você controla o que eles pensam.”

Num depoimento à revista Vida Simples, Leandro Quintanilha explicou essa profundidade toda assim:

“Para o psiquiatra e filósofo Neel Burton, autor do livro Heaven and Hell: The Psychology of the Emotions, a crença em si é um conceito complicado, que precisa ser diferenciado de sentimentos afins. (…) Uma pessoa pode ser bem resolvida em habilidades específicas, como cozinhar ou dançar, ao mesmo tempo em que se revela insegura em outras áreas, como dirigir ou falar para um grande público. Esse tipo de autoconfiança setorizada ocorre quando não há uma correlação entre a fé em si mesmo e a autoestima”.

“E repare: a autoconfiança é uma competência de atualização constante. Não se estabelece, precisa de reforço positivo o tempo todo. Isso significa que os seus atos podem melhorar sua autoimagem vigente. Lembra que tudo começa com uma decisão? Também ajuda valorizar pequenas glórias cotidianas. (…) Cada um sabe de suas dificuldades, e o que é trivial para um pode ser uma conquista para outro. (…) A vida é cheia de oportunidades para se fazer uma média consigo mesmo”.

Se construir, se inventar, ser quem você é, é trabalho para uma vida toda. Todos os especialistas citados aqui concordam com isso. Você mesma deve ter momentos em que acredita estar a um passo de conquistar a Lua com tanto poder que sente emanar de cada poro, mas também deve ter dias que chora diante de uma pia que insiste em não ser autolimpante, apesar de todo o seu cansaço de mulher que trabalha, estuda e cuida da vida.

A gente adoraria dizer para você que existe uma regra de ouro para encarar a vida. E que você vai acordar todo dia se sentindo incrível, que vai tudo ficar tudo bem. Só que não é assim. Ninguém vem com manual de instrução. Tem dias que o discurso motivacional não funciona. E não vai ser a gente ou qualquer outra pessoa que vai te ensinar a ser você. Primeiro, porque não dá para repetir a quantidade exata de reações químicas que acontece só em você. E, mesmo em irmãos gêmeos, que compartilham até o mesmo código genético, a experiência humana é única e não replicável. E, parando para pensar, isso é maravilhoso.

Da mesma forma, não faz sentido terminar com exemplos de pessoas que mandaram bem. Porque se comparar com os outros é inevitável e ineficaz. Essa é uma das coisas que você pode evitar. O que vemos todos os dias e, infelizmente, a tecnologia não ajudou muito a resolver, é um exército de pessoas prontas para adorar ou odiar de forma extrema e, por vezes, irracional. Por isso, se é que vale a pena deixar alguma palavra parecida com um conselho, vamos lembrar dessas dicas da nossa Marie Curie:

“Life is not easy for any of us. But what of that? We must have perseverance and above all confidence in ourselves. We must believe that we are gifted for something and that this thing must be attained.”

&

“Nothing in life is to be feared, it is only to be understood. Now is the time to understand more, so that we may fear less.”

Marie Curie é uma newsletter que traz conteúdo para mulheres. Toda semana, discutimos algum tema ou trazemos uma entrevista que tenha impacto na maneira como você trabalha, se posiciona e se relaciona com a sociedade.

A versão original dessa matéria foi publicada em 19 de julho de 2018. Para se inscrever e receber um e-mail nosso todas as quintas-feiras, clique aqui.

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