Muros que gritam

Tiago Alcantara
Marie Curie News
Published in
6 min readDec 13, 2018

A arte da desenhista e ilustradora Karine Guerra

Quem é?

  • 33 anos;
  • Ilustradora, desenhista, muralista.

É difícil caminhar por grandes cidades do Brasil e não encontrar uma mensagem em algum muro. Sejam grafites ou pichações, o cenário é de uma batalha entre o cinza e o colorido na paisagem urbana — com diversos sentidos e interpretações. Para alguns, a tinta que cobre paredes é uma sujeira que insiste em macular pontos turísticos, monumentos e casas. Para outros, cada uma dessas marcas é uma tentativa de comunicação, um grito silenciado de grupos que reivindicam seu lugar de fala.

Não importa de qual vertente você seja partidária. Ou se estamos falando de pichação ou grafite. O fato é que cada muro tem muita história para contar. Uma delas é a da entrevistada de hoje. Desde 2016, Karine Guerra conta histórias nas paredes de São Paulo. A artista preenche a cidade com seu imaginário e sua resistência.

“Percebi por meio da prática do desenho [o chamado para a arte], presente desde a infância. Enveredei para outras profissões para me sustentar e estive assim até o começo deste ano, quando vi condições de me dedicar à produção artística e tomá-la como ganha-pão. Mas na minha cabeça, desde muito pequena, mesmo não tendo muita ideia do que isso envolvia, o cenário ideal sempre foi o trabalho com arte”.

Aos 31 anos, a ilustradora e muralista não se define com grafiteira. Ela conta que prefere imaginar as paredes como um suporte para sua arte. Nos desenhos de Guerra, são encontrados vários tipos de referências. Mas, no centro: uma necessidade de representação de um conflito que tem sempre uma presença feminina em destaque.

É curioso que, historicamente, as mulheres sempre tenham sido representadas nas artes clássicas sob uma ótica masculina. Como é, afinal, uma mulher representando outras pelas paredes da cidade?

“Entre outras coisas, está a vontade do corte dessa hierarquia que vocês citaram, bem como a análise e a mudança de conceitos de submissão e violência, incrustados na base das relações”

A artista conta que já foi vítima de preconceito por levar sua arte para as ruas. E acredita que esse tipo de comportamento é recorrente.

Guerra também faz parte do coletivo ZL 100 Registro, que conta um pouco da história de pessoas marcantes no fomento à cultura na Zona Leste de São Paulo. Durante o período do projeto, os participantes conversam com cem pessoas, “sem” ou com poucos registros de seus trabalhos. A ilustradora dá o exemplo de Uilian Chapéu, cocriador e produtor de projetos culturais na região, como o Slam da Guilhermina.

Para quem ficou perdido na referência

Um Slam é uma espécie de campeonato de poesia em que os autores têm um tempo determinado para apresentar suas performances. Os artistas também são livres para improvisar, e não há uma estrutura obrigatória para os textos. Após as apresentações, um júri dá notas de 0 a 10 aos poetas. Para se ter uma ideia da importância do agente cultural Uilian Chapéu, o Slam da Guilhermina foi o segundo evento desse tipo a ser organizado no país.

“Se fizermos uma busca na internet sobre o Chapéu, não saberemos muito sobre as tantas coisas que ele desenvolve ou desenvolveu. O ZL 100 Registro surge da vontade de disseminar essas narrativas de esforços pela cultura, que mudam a realidade de tanta gente, sobretudo em bairros de periferia”, conta a ilustradora.

O projeto também prevê encontros com esses agentes culturais e uma exposição, com minibiografia, fotos e retratos das pessoas convidadas. Guerra ainda comenta que vai desenvolver um mapa colaborativo da região paulistana, no qual os visitantes poderão colar adesivos nos locais onde já consumiram cultura.

1 — Uma das linguagens que você usa para se expressar são os murais. Qual é a sensação de quando você completa uma obra?

No meu caso, o trabalho com murais quase sempre se dá coletivamente, então mesmo que no desfecho a arte não nos agrade completamente, compartilhamos de ideias e experiências, o que é muito legal. Há também um alívio físico de dever cumprido, principalmente quando é dia de muito sol e/ou o muro é muito alto e nos obriga a subir e descer mil vezes da escada.

2 — Quais são suas principais referências? O que a inspira a fazer arte?

Tenho a sorte de estar rodeada de artistas. Vou citar três que me afetam diretamente, por talento, doçura, sabedoria e bom humor: Raquel Marques, Jana Santos e Suzanna Schlemm.

3 — Um dos seus trabalhos foi descrito como um posicionamento sobre os “estados de violência e coação a que as mulheres estão expostas”. Como essas situações de abuso influenciam seu trabalho?

O machismo e a misoginia estão amarrados às relações desde a infância, quando aprendemos a nos portar de tal forma, a brincar de determinadas coisas, a ter uma aparência específica que agrade os meninos, entre tantos outros exemplos. Isso é de tal maneira normatizado que fica difícil inclusive identificarmos quando e como acabamos replicando a mensagem de que a mulher só é ou pode alguma coisa quando em função do homem. Vejo produção em arte também como um meio de observação e análise de contextos abusivos, para que sejam tratados fora do terreno da normatividade.

4 — Fazer arte no Brasil é um gesto de resistência?

Eu percebo um movimento de não dependência das instituições de arte. Os artistas estão se valendo de meios próprios, reunindo forças em coletivos para viabilizarem seus trabalhos. Sim, é gesto de resistência, porque o fazer artístico ainda é visto com desprestígio, como algo não primordial na formação das pessoas — e, consecutivamente, não costuma ser bem remunerado.

Para finalizar, me conte uma curiosidade sobre o seu trabalho.

“Hoje, no processo de execução de um mural, uma senhora veio nos falar que passaria a dizer aos frequentadores de sua casa que ela mora na ‘rua do graffiti’. Costumamos ouvir muitos comentários como esse, e eu fico lisonjeada. Também me sinto muito feliz quando se estabelece uma relação respeitosa, mesmo quando o passante ou morador não gosta do tipo de desenho ou da temática retratada.”

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