O novo lar de Marifer Vargas

Marie Curie News
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7 min readNov 30, 2018

E como foi seu caminho da Venezuela para o Brasil

“A situação que você vê na televisão e nas mídias sociais, na realidade, é muito pior.”

É assim que Marifer Vargas começa a contar a história de como deixou Maracay, na Venezuela, em uma jornada que teria como destino a cidade de São Paulo. Mari, como gosta de ser chamada, chegou ao Brasil em agosto de 2017, com a filha de 12 anos, Miranda. As duas estão entre os 17.865 venezuelanos que solicitaram abrigo ao governo brasileiro no mesmo ano.

Para se ter uma ideia da importância do número acima, basta dizer que ele representa mais da metade dos pedidos de refúgio — no total, foram 33.866 em 2017. Os estados com os maiores números de solicitações de venezuelanos são Roraima (15.955), São Paulo (9.591) e Amazonas (2.864). O primeiro e o terceiro fazem fronteira com o vizinho latino-americano. Os dados são da Polícia Federal.

Pessoa que deixa o seu país de origem ou de residência habitual devido a fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, bem como em virtude de grave e generalizada violação de direitos humanos.

Fonte: Secretaria Nacional de Justiça — Ministério da Justiça

De janeiro a abril de 2018, o número de pedidos de residência vindos de cidadãos da Venezuela superou os 10 mil. A crise humanitária vivida pela professora e por seus conterrâneos já é comparada ao drama dos refugiados no Oriente Médio e na Ásia. Mesmo as maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo não são suficientes para dar ao povo do país uma vida digna. Com a maior inflação do planeta, comida e remédios se tornaram inacessíveis para boa parte da população.

“As pessoas, infelizmente, estão morrendo de fome, estão morrendo porque não conseguem remédio. É muito difícil, pois essa situação estragou o país. E não é uma questão de um partido. O poder cegou as pessoas; elas não sabem o que estão fazendo e não se rodeiam mais das melhores pessoas. Estou muito preocupada porque sei que a Venezuela é diferente.”, lamenta a refugiada.

Para onde eles vão?

Os principais destinos

1.Colômbia
819 mil venezuelanos

2. Equador
547 mil venezuelanos

3. Peru
400 mil venezuelanos

4. Brasil
128 mil venezuelanos

Fontes: ONU, RAMV-Colombia e G1

Uma reportagem do The New York Times acompanhou 21 hospitais em 17 estados da Venezuela e trouxe relatos sobre as mortes de crianças por desnutrição. Antes de 2015, quando a crise econômica se agravou, os casos desse tipo eram raros e, em geral, culpa de maus-tratos de pais e mães. O governo de Caracas não divulga dados oficiais, mas os pediatras entrevistados pelo veículo norte-americano apontam que o número de crianças definhando por conta da fome mais do que triplicou entre 2015 e 2017.

Nesse cenário, a mudança pode representar a diferença entre viver longe de casa ou somente subsistir em meio ao caos. Por isso, os venezuelanos são a 4ª população que mais pede asilo no mundo, atrás apenas dos afegãos, sírios e iraquianos.

No entanto, o motivo que trouxe Vargas para a cidade mais populosa do Brasil tem relação com outro desdobramento dessa crise. Em 2017, ela se reuniu com seu marido. Por motivos de segurança, ela pediu que o nome do esposo ficasse em segredo, mas concordou em contar o trauma que fez sua família percorrer cerca de 6 mil quilômetros atrás da esperança de uma vida em segurança, pasmem, no Brasil.

“Foi na noite do meu aniversário, 29 de março de 2016.

Estávamos chegando em casa, quando um carro fechou o nosso e minha família foi sequestrada. A ideia era pressionar meu marido.

Ele tinha um cargo de gerência de um canal de televisão regional, controlado pelo Estado. O dono do canal tinha contato com o vice-presidente da República.

Ele denunciou irregularidades para o chefe e recebeu de volta uma oferta de propina: dinheiro e, depois, um apartamento. Ele não aceitou.

Então, sofremos um sequestro-relâmpago, como vocês dizem aqui. Foi uma experiência traumatizante; só nos soltaram no dia seguinte”.

Acreditem, o terror, com embargo na voz, é bem pior do que o descrito acima pela educadora. No dia seguinte, a família sabia que a única opção era deixar a Venezuela. Seu marido, por conta do risco à sua vida, veio para o Brasil primeiro e se reuniu com Marifer e a filha quase 1 ano depois. A família já havia visitado o país em férias, mas sabia que o adotar seria bem diferente.

Ao contrário do que se possa imaginar, a ex-professora pública conta que a acolhida foi a mais calorosa possível. Ela comenta que foram recebidas na Casa do Migrante (“um lugar maravilhoso”) e descreve a experiência “como chegar à minha própria casa”.

“Nós nos sentimos muito seguros. Imagine a paz que nós sentimos aqui, mesmo com tanta bagunça e problemas”, comemora Vargas.

O Brasil virou até mesmo a casa de um empreendimento do casal. Como parte da ideia de refazer a vida, abriram um comércio de comida venezuelana, chamado Nossa Janela.

Atualmente, por conta do preço da validação do seu diploma, Vargas não trabalha como professora. Ela atua como educadora social na Cáritas Brasileira — órgão ligado à igreja católica brasileira — e se diz muito feliz com a integração ao país. A filha já fala com gírias dos paulistanos, por exemplo. No entanto, nem tudo é fácil: Vargas não vê a mãe, de 82 anos, desde que chegou ao Brasil.

“Ela ficou lá, porque tem 82 anos. Eu falo para ela que quero trazê-la, mas ela pergunta quem vai colocar água nas plantas. Estamos juntando dinheiro porque é caro e, por conta da idade, ela não pode vir de ônibus. Só da Venezuela até Boa Vista (capital de Roraima) são 30 horas. Porém, ainda tenho esperança de me juntar a ela novamente.”

Após 1 ano e 4 meses morando fora de seu país, a educadora já sofreu algum preconceito, mas faz questão de contemporizar a situação.“Claro que também conheci gente que dizia ‘você é estrangeira, você não tem que estar aqui’”, conta.

O que mais magoa e preocupa a venezuelana, no entanto, é o choro da filha. Na escola, a adolescente ouviu de um amigo que teria que voltar para a Venezuela depois que um candidato fosse eleito. “Disse para ela que estamos seguras, e a verdade é que, infelizmente, não posso voltar. Era uma funcionária pública lá e fico marcada pelo sistema. [Ao deixar o país] é como se fosse uma traidora da pátria.” No entanto, a refugiada se preocupa com as políticas adotadas pelo próximo governo do Brasil em relação aos imigrantes.

Para terminar, uma pergunta:

Com uma mudança de governo e situação, você teria vontade ou mesmo esperança de voltar para sua casa?

“Lá pode mudar o governo, mas não a mentalidade das pessoas. São 20 anos de gerações acostumadas com o paternalismo do governo. É preciso aprender que é preciso trabalhar, estudar. Senão, não há como tocar a vida sem seguir dependendo. Lá, infelizmente, as pessoas estão se acostumando ao fato de o governo dar tudo.

Eu não voltaria para ficar, infelizmente. Com toda a dor da minha alma. Amo minhas ruas, minhas praias, mas não poderia voltar.

Aqui, reiniciamos nossa história, reinventamos nossa vida e fazemos de São Paulo nossa cidade e do Brasil, nosso novo lar.”

Marie Curie é uma newsletter que traz conteúdo para mulheres. Toda semana, discutimos algum tema ou trazemos uma entrevista que tenha impacto na maneira como você trabalha, se posiciona e se relaciona com a sociedade.

A versão original dessa matéria foi publicada em 22 de novembro de 2018. Para se inscrever e receber um e-mail nosso todas as quintas-feiras, clique aqui

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