Ser diferente é normal

Mônica Wanderley
Marie Curie News
Published in
10 min readApr 25, 2019

Uma conversa sobre gênero

No dia 3 de junho, aconteceu em São Paulo a 22° edição da Parada do Orgulho LGBT. O evento foi criado para celebrar a diversidade e colocar em destaque causas sociais que sejam de relevância a esse público, como a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a facilitação do processo de inclusão do nome social .

Ao olharmos os últimos anos — com mais artistas assumidamente homossexuais e a inclusão desse público em novelas e séries, por exemplo — é possível dizer que os temas relacionados à essa população estão, sim, em maior evidência no Brasil. Só que ainda estamos muito longe de cantar vitória.

“Educação não transforma o mundo.
Educação muda pessoas.
Pessoas transformam o mundo”

Paulo Freire

Já comentamos em edições anteriores que as grandes agressões acabam acontecendo aos poucos, muitas vezes apoiadas por uma cultura que permite que desigualdades e injustiças ocorram. E essa teoria se aplica ao tratamento pouco amistoso que os representantes da cultura LGBT encontram no Brasil.

Por isso, decidimos abordar conceitos iniciais sobre gênero, um dos aspectos principais para entender a perspectiva de alguém que não se enquadra no padrão de gênero e orientação sexual. Essa ainda é uma discussão longa e bastante complexa no país. Mas nossa ideia é que, ao final da leitura, você entenda o suficiente sobre o tema. Porque fica mais fácil fazer a diferença, mesmo que com pequenas atitudes, quando a gente entende melhor do universo do outro.


Primeira pergunta: há definição?

A busca por uma explicação que ajude a definir o significado de gênero é abordada há décadas por movimentos sociais e dentro da academia. Em 1995, por exemplo, a psicóloga e socióloga Maria Eunice Figueiredo Guedes abordou o significado da palavra em seu artigo Gênero, o que é isso?.

Em sua pesquisa, ela traz três propostas que, combinadas, podem nos dar uma pista sobre o assunto do ponto de vista linguístico e das relações sociais:

  • Gênero, na Linguística, como “ qualquer agrupamento de indivíduos, objetos, idéias, que tenham características comuns “;
  • Gênero, nos Estudos Sociais, como “uma categoria socialmente imposta sobre um corpo sexuado”;
  • Gênero, ainda nos Estudos Sociais, como “ uma forma de entender, visualizar, referir-se à organização social da relação entre os sexos “.

A pesquisadora mata a charada quando aponta que “a definição de gênero torna-se complicada, pois além de apresentar vários significados, agrega os sentidos mais amplos ligados a ‘caracteres convencionalmente estabelecidos’, bem como a ‘atividades habituais decorrentes da tradição’”. Ou seja, é uma percepção que muda de acordo com construções sociais e de época.


E por que é importante falar sobre isso?

Porque está intimamente ligado à identidade, que é a forma como uma pessoa se posiciona perante o mundo. Para pessoas que se encaixam nos padrões sociais mais aceitos, a questão pode não fazer a menor diferença. E, pior, virar até motivo de depreciação e subrepresentação de quem é diferente.

O medo do outro, do diferente e até mesmo uma descrição desse “inimigo” como algo feio e vil é um um mecanismo de conservação bastante antigo e, ao mesmo tempo, extremamente perigoso. Porque, para justificar tanto temor, abre-se caminho para o isolamento e também aos discursos de ódio . Quem nunca presenciou um momento de hostilidade, violência ou ignorância a um casal homoafetivo em espaços que deveriam ser inclusivos e seguros para todos?

No início do ano, a ONG Human Rights divulgou um relatório no qual registra 725 denúncias de violência, discriminação ou abuso contra a população LGBT. Todas as queixas foram registradas no primeiro semestre de 2017. A realidade é ainda mais chocante: 445 membros da comunidade foram mortos em crimes motivados por homofobia no ano passado, de acordo com um levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB).

Isso significa que, a cada 19 horas, uma pessoa está sendo assassinada pelo simples fato de existir.

Não dá para defender igualdade de gênero e diversidade sem entender o que realmente cada coisa quer dizer. Que tal saber um pouco mais sobre pessoas diferentes e como elas se definem?

Em 2015, dois autores brasileiros — Jim Anotsu e Alliah/Vic — lançaram o Manifesto Irradiativo para confrontar a falta de representatividade na literatura especulativa nacional. Segundo a dupla, o documento foi criado “porque as naves espaciais e o outro lado do espelho devem pertencer a todos”. O movimento foi uma forma de reagir às hostilidades, violência e a ignorância presenciadas no cotidiano da comunidade.

Já falamos sobre o papel da literatura fantástica como campo de aceitação do diferente. E fica a pergunta. Na sua franquia favorita do cinema, série ou TV: qual é o tom de pele dos protagonistas? E sua orientação sexual? Como essa pessoa se define frente aos outros? Não precisa ser craque em estatística para dizer que há grande chance dele ser homem, branco e hétero.

“O mundo do papel e das telas ainda é dominado por homens cis brancos fazendo o que sempre fizeram e refazendo o que sempre fizeram. É por isso que acreditamos numa forma de tomar isso de assalto, fazendo barulho com o que temos e o que podemos para mudar esse cenário. Queremos que a literatura de gênero evolua, que abrace todas as pessoas do mundo e não apenas uma minúscula parte dele.”

Trecho do Manifesto Irradiativo

Se você duvida que a língua pode ser um veículo para perpetuar preconceitos, feche os olhos e imagine todos os xingamentos que você conhece. Os mais “populares”, provavelmente, são sexistas e homofóbicos, para não dizer deselegantes.

Algumas correntes linguísticas e sociológicas propõe que os idiomas, assim como as pessoas, não devem ser binários. A chamada linguagem neutra faz uso da letra “x” no lugar dos artigos que caracterizam gênero. Os defensores do sistema apontam que essa atitude descaracteriza a ideia de que as palavras são masculinas ou femininas.

Há quem defenda que a discussão deve ir muito além, já que o uso do “x” ou da @ podem excluir usuários com deficiência visual. Fato é que pensar forma e conteúdo de maneira crítica é, sim, saudável para que todos se sintam reconhecidos. Afinal, o idioma é um dos principais elementos de identidade de qualquer povo.

Em 2014, a Secretaria de Políticas para as Mulheres do Rio Grande do Sul elaborou um Manual para utilização da língua de maneira não-sexista, achamos interessante destacar o seguinte trecho:

“A língua não só reflete, mas também transmite e reforça os estereótipos e papéis considerados adequados para mulheres e homens em uma sociedade”

Vale lembrar que o uso não sexista da linguagem deveria ser uma regra de qualquer governo que respeite a Constituição e os direitos individuais de cada cidadão.

O mais cedo possível. Como nossa visão de mundo se consolida em nossos primeiros anos de vida, a escola seria o melhor lugar onde as pessoas poderiam aprender sobre gênero e suas diferenças. Pois, com esse ensino incluso na grade de educação nacional, teríamos a certeza de que o tema seria coberto em todo o país.

Já houve uma tentativa por parte do governo de implementar o tema nas escolas brasileiras. Chamado de “Escola sem Homofobia”, o projeto consistia numa série de vídeos e textos que visavam combater a violência e o preconceito contra a população LGBT . Na época, o material foi vetado após receber críticas de que o conteúdo seria contrário aos valores morais ou religiosos dos pais.

A questão é que, vendo os altos índices de violência que a população LGBT vive no Brasil — somos o lugar que mais mata pessoas trans em todo o mundo e onde mortes de membros da comunidade aumentaram 30% entre 2016 e 2017 — é necessário tomar iniciativas para reduzir essa onda de agressividade. E a rede ensino é um dos locais mais indicados para que isso ocorra.

A visão é compartilhada em outros locais do mundo. Braço da ONU focado no desenvolvimento para Educação, Ciência e Cultura, a UNESCO acredita na importância de conversas sobre sexualidade e gênero na educação. A entidade até compartilhou materiais que podem ajudar os professores interessados na abordagem do tema.

Não queremos invalidar as discussões abordadas por quem foi contra o projeto inicial, mas sugerir que ambos os lados cheguem ao máximo de consenso possível. Esse é um assunto que precisa ser abordado com urgência. Afinal, pessoas (independente de definição) estão morrendo.

Mesmo com os temas de gênero e sexualidade mais explorados na mídia (como a história de Ivana, uma moça que se descobriu transgênero ao longo da novela A Força do Querer), ainda há muito desconhecimento sobre ambos os assuntos. E essa falta de informação se torna um problema delicado quando você passa a conviver com essa realidade.

Para auxiliar, listamos boas práticas para agir com empatia:

  • Informe-se: existem sites, filmes e livros dedicados ao tema. Eles ajudam muito a se colocar no lugar da outra pessoa. Se você tiver dúvidas sobre qual escolher, pergunte aos seus conhecidos que são gays ou transsexuais.
  • Se você estiver conversando com uma pessoa trans, nunca pergunte se ela já fez a cirurgia de mudança de sexo. É um assunto muito pessoal, sem falar que o procedimento não é necessário para uma pessoa se denominar transgênero.
  • Ainda sobre o tema trans: se você tem dúvidas sobre como chamar, pergunte; a pessoa vai ficar feliz ao perceber o seu esforço em tratá-la da forma que ela deseja.
  • Corte na hora “piadas” ou menções que tratem de forma desdenhosa o público homossexual. Dependendo da circunstância, nem sempre dá para fazer isso, mas, quando possível, mostre à pessoa porque ela não deve adotar esse tipo de comportamento.
  • Ninguém é imune a comentários inapropriados ou uma postura enviesada. No entanto, é importante reconhecer esses momentos e, quando a situação permitir, fazer uma retratação.

Como lembra a psicóloga Lilian Andrés, não é fácil enfrentar o mundo. No entanto, ser diferente não é, necessariamente, ser desigual.

“Não é nada fácil estar fora dos padrões previamente definidos, portanto, se quisermos construir uma sociedade mais permeável às diferenças e mais verdadeira às características de seus integrantes, é importante acolher, incluir e entender de uma maneira empática estas expressões de singularidades.

A humanidade atravessou séculos criando formatos e categorias para fomentar uma estabilidade para a construção social. No entanto, somos seres mutantes, nossa sexualidade e expressão humana é fluida e não cabem nos formatos que destinaram a ela”.

Para terminar essa edição, conversamos com pessoas próximas e pedimos que elas compartilhassem suas descobertas e um pouco de suas lutas. Essas foram as mensagens que elas nos deixaram:

Foi difícil contar para minha mãe, criada no interior da Bahia, que eu provavelmente não iria casar vestida de noiva, com véu e essas coisas. Eu disse para ela que gosto de pessoas, não me importa o jeito.

D.O. bissexual

Por um tempo eu tentei sair e cheguei a namorar com a minha melhor amiga. Só que sentia como se estivesse fugindo, uma angústia tão grande. Até o dia em que resolvi simplesmente ser o que eu sou. Só isso.

B.B. homossexual

Se descobrir gay é algo muito pessoal, interno, e você não precisa necessariamente estar com alguém para que isso aconteça. É preciso ter aceitação e compreensão consigo mesmo, independente de estar ou não com outra pessoa.

J.E. homossexual

Durante o meu processo de descoberta e aceitação, aprendi com um de meus melhores amigos — também gay — que assumir-se só acontece mesmo quando você se assume pra você mesma. Depois disso, assumir-se pro mundo, incluindo amigos e família, é muito mais lindo e leve. Para além disso, todos os relacionamentos são os mesmos, todos os altos e baixos, todo amor.

M.V. homossexual

Quando resolvi viver minha sexualidade, a questão do gênero veio como brinde. O gênero é vivido de muitas formas. Parte dos meus amigos dizia que, desde a infância, se sentia estranho no ninho.

Laerte Coutinho, trans em entrevista ao Conversa com Bial

Marie Curie é uma newsletter que traz conteúdo para mulheres. Toda semana, discutimos algum tema ou trazemos uma entrevista que tenha impacto na maneira como você trabalha, se posiciona e se relaciona com a sociedade.

A versão original dessa matéria foi publicada em 7 de junho de 2018. Para se inscrever e receber um e-mail nosso todas as quintas-feiras, clique aqui.

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