Ser pai além do Insta

Mônica Wanderley
Marie Curie News
Published in
11 min readMay 1, 2019

Sobre a “nova” paternidade

No meio da entrevista, uma interrupção:

- Oi, amor, comeu tudo? O suco também? Não, a mamãe ainda não chegou. Papai tá falando com uma amiga.

O analista de sistemas Erick, de 37 anos, é pai de Miguel, que completa seis no próximo mês. Quando sua companheira, Ananda, contou que estava grávida, os dois não estavam exatamente juntos. Haviam saído algumas vezes, muitas delas como amigos. Ela não estava grávida dele. Enquanto o outro homem se manteve distante, negando a paternidade da criança que estava por vir, Ananda pôde contar com o apoio de Erick durante exames e os mal-estares característicos do período. Ele diz que não fez nada demais. Mas lembra de ter chorado “que nem bebê” quando ouviu os batimentos cardíacos de Miguel pela primeira vez, na gravação do ultrassom. “Naquele momento, eu soube que estava ligado a ele.”

Quando Miguel nasceu, em 2012, já estava acertado: ele seria padrinho do menino. Só que, no dia de fazer o registro do pequeno, o pai biológico disse que não iria colocar seu nome na certidão, que não tinha certeza se era pai mesmo. “Aí eu pensei, ‘quer saber’? Falei: ‘mano, coloca o meu nome. Porque, se um dia esse cara aparecer do nada, querendo alguma coisa do Miguel, vai ser mais difícil para ele conseguir.’” Desde o nascimento, Erick é a figura paterna do menino. Ganhou oficialmente o nome de “pai” na festinha de três anos dele, aliás. “Ele me chamava de ‘Parque’, não sei por quê. Aí, nesse dia, ele perguntou ‘Parque, você também é pai?’. Eu disse: ‘se você quiser, eu posso ser. Eu quero ser.’. E Erick virou pai.

Não que o próprio Erick tivesse tido um bom exemplo do que significava ser pai dentro de casa. O seu pai costumava ficar meses fora, quando tinha algum trabalho. A família, como ele descreve, era o paraíso sem ele. “A gente achava que ele vivia bêbado, mas depois descobrimos que ele era viciado em cocaína. Estava sempre agressivo. Então, um dia, meu pai violentou a minha mãe na minha frente. Depois disso, a gente fugiu de casa. Essa era a minha referência de pai.”

Encontrar o seu próprio significado para a palavra “pai” foi uma busca para Erick. Ele lembra de, certa vez, ter chegado em casa e tentado falar com Miguel. “Ele nem olhou pra minha cara. Horas depois, veio me dar um beijo e eu disse ‘não, você não quis aquela hora.’ Depois de ouvir podcasts sobre paternidade, conversar muito, pensar muito, eu vi que não estava sendo tão legal para ele pular em cima de mim quando eu chegasse em casa. Eu era só um cara que chegava lá e fazia comida e achava que era foda. Acontece que eu ainda me sentia um cara solteiro morando sozinho, só que tinha uma família dentro de casa. A gente mudou algumas rotinas dentro de casa e eu comecei a participar mais.”

“Eu me identifiquei muito com a filosofia de criação do apego, na qual você respeita a criança, abraça muito, mostra, sobretudo, que você também é humano. Eu e a Ananda tentamos tirar dele todas essas ideias de que ‘homem não chora’, é impressionante um menino de seis anos vir da escola com essas ideias. Conversamos muito e, às vezes, ele me ensina mais do que eu acho que estou ensinando para ele.”

“O Miguel sabe que eu sou um pai que está com ele. Que existiu um processo biológico, do qual eu não fiz parte, eu não fui o cara que doou os genes. A gente fala com ele sobre isso, para ele ir entendendo, conforme for crescendo. Eu tenho muita insegurança com isso, aliás. De ele crescer e querer encontrar o pai biológico e aí, do nada, esse ser virar o pai foda. Eu estou nesse processo de me libertar disso. Mas a verdade é que eu sei que vou sempre estar ligado a ele.”

Existe um motivo para a história de Erick, Ananda e Miguel estampar o começo da newsletter de hoje. É que ela reflete os principais pontos que queremos contar nesta edição, que é temática, por conta do Dia dos Pais.

O adjetivo novo usado aí em cima ainda causa certo espanto e estranhamento, principalmente nas mulheres. Porque se, de repente, os rapazes estão se convertendo naquilo que elas sempre desejaram — um pai participativo — é capaz de que as novas mães não saibam bem como lidar e o que fazer com essa nova situação.

A psicóloga Luciana Castoldi, na sua tese de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) fez um levantamento histórico das relações familiares, no mundo e no Brasil. Estudou ainda a figura paterna em diferentes períodos e analisou o processo de construção da paternidade durante a gestação e ao longo do primeiro ano de vida do bebê.

Os “tipos” de pai

Nas páginas da pesquisa de Luciana, aparece um outro levantamento, feito por Anthony Rotundo, que propõe a divisão da paternidade em dois períodos: a Paternidade Patriarcal (de 1620 a 1800) e a Paternidade Moderna (de 1800 a 1970). A essas duas, Rotundo propõe uma outra paternidade, a atual, chamada de Paternidade Andrógena (de 1970 até o presente). E essa divisão ajuda a ilustrar como a visão que a gente tinha dos homens dentro da instituição familiar mudou ao longo dos anos.


Do século 17 até o 19 (na era da Paternidade Patriarcal), o pai era a figura de poder na família. Era a autoridade inquestionável, porque era vista como natural. Só ele trabalhava e desempenhava o poder econômico. A grana era dele e, por isso, a última palavra também. O pai das antigas era também uma espécie de juiz, professor e orientador moral dos filhos e da esposa também, decidindo desde a profissão dos homens aos futuros maridos das filhas mulheres.

Na virada para o século 19 (Paternidade Moderna), as coisas começaram a mudar. Os filhos iam crescendo, saindo de casa e mudando para a cidade grande e deixando de ficar sob o domínio do pai mais cedo. Essa modernidade, somada a solidão de não precisar mais ditar o tom e as regras, fizeram o pai mudar, ou iniciar a mudanças.

E foi nesse tempo que as mulheres viraram as gestoras do lar. Com os homens fora de casa o dia todo, o lar passa a ser o reino das minas. Que assumem ainda a educação e a criação dos filhos. Os homens ainda eram os chefes e os mentores, mas as mulheres ganharam o operacional.

Mudança mesmo acontece do século 19 até o final do século 20 (Paternidade Andrógena), quando o trabalho fora de casa fez os homens serem cada vez mais importantes para a política e para a economia, mas os afastou da família e, principalmente, dos filhos. Uma boa parte dos rapazes entendeu que isso era normal e que a distância em relação à família era o que se esperava deles. Se fecharam em seus mundos e foram viver outras emoções no trabalho e na vida.

Ainda hoje, existem pais exatamente assim, que veem os filhos como seres apartados da sua vida e sob os quais não possui responsabilidade. Um exemplo desse alienamento é encontrado, por exemplo, quando olhamos para os números processos de pensão, como aponta a matéria publicada em maio desse ano na versão brasileira do El País.

“Atualmente, ao menos 100.000 processos de cobrança de pensão alimentícia estão tramitando, segundo um levantamento feito em março deste ano pelo jornal O Globo. Dentre eles, o do ex-jogador de vôlei Giba, que chegou a ter a prisão decretada em fevereiro, mas no último tempo acabou pagando os 90.000 reais que devia à ex-mulher, que ficou com a guarda dos dois filhos do casal”.

A situação é tão séria que não pagar a pensão alimentícia é um dos poucos casos que faz homens brancos e de classe média irem para cadeia. Sem muita discussão. Só sai depois de pagar.”

Mas há uma leva desses pais (daí o termo Paternidade Andrógena) que começaram a se voltar mais para a casa, para a mulher e para as crianças. Essa turma quer participar e viver mais de perto o desenvolvimento dos meninos e das meninas. E também quer receber carinho e atenção deles.

“Os novos tempos afetaram a organização familiar intensamente e implicaram em mudanças comportamentais masculinas. Hoje, os homens exercitam outra postura como pais hoje em dia. A construção deste papel ainda está acontecendo e se tornando muito comum durante as conversas nos happy hours, algo que antes era tema apenas do público feminino. O cuidado com a casa, com a alimentação e com os prestadores de serviços também tem se tornado uma constante nas rodas de conversas masculinas.” Contextualiza a psicóloga Lilian Andrés.

De acordo com ela, o processo de conscientização sobre essa nova paternidade tem ganhado cada vez mais adeptos.

“O que se nota, é que em muitos casos eles estão se saindo bem. Estão inovando a forma de conduzir a educação, é uma função que tem de ser exercida pelos responsavelmente. Devido a proximidade comumente encontrada nas famílias atuais as regras são colocadas de maneira mais clara como num jogo que tem de funcionar mesmo com imprevistos.”

Os “novos pais” ainda não são maioria, mas estão começando a lançar as sementes do que é essa tal “nova paternidade”. Com o pai mais dentro de casa, presente e participativo, quem ganha toneladas de benefícios é a criança. Essa interação tem impactos diretos no presente, claro, mas se prolonga por todo o futuro e, garante Luciana Castoldi, modifica a própria evolução da espécie.

“Seguir o exemplo do pai é benéfico para a criança, dá parâmetro, dá limite. Ter um pai a quem recorrer dá segurança e tranquilidade.”

Se é verdade que não basta ser pai, tem que participar, é verdade também que, apesar desse pensamento crescer a olhos vistos, ele ainda não é o padrão.

Como na gestão da casa. O mais comum é o cara achar que o papel dele se limita a “ajudar” a mulher. E isso só de vez em quando, porque ele chega cansado do trabalho e, por conveniência, prefere não chamar para si a responsabilidade de lavar os pratos, ou de revisar a lição de casa. Ele até faz ~aparições especiais~ na rotina da casa e dos filhos. Mas o termo correto ainda é ajudar. Esse pai, que é maioria, não compartilha de verdade as tarefas domésticas.

Ok, às vezes o camarada até se esforça, mas são 500 anos de padrão para quebrar. As mudanças na sociedade são lentas e, mesmo assumindo diversas funções no trabalho e em casa, muitas mulheres ainda insistem em monopolizar a criação dos filhos. Um comportamento que também precisa se transformar:

“É necessário que a mãe permita ao pai participar deste processo educativo , desempenhando seu papel construtor na personalidades dos filhos.” Explica Andrés.

De acordo com a psicóloga, também é importante que a mãe procure apoiá-lo nesta empreitada.

“Trata-se de uma delicada construção familiar. O pai que deseja se envolver mais tem a tarefa de apoiar e proteger a criança. E, quando algo na infância, ele próprio não teve exemplos nos quais se espelhar, é possível que surjam dificuldades para adotar uma postura diferente para essa função”.

Claro que ainda estamos falando de uma situação ainda bem rara, já que a maioria dos pais se contenta em “fazer a sua parte” contribuindo financeiramente. Acontece que está crescendo o entendimento de que uma conexão verdadeira entre pai e filhos só acontece quando ela começa desde os primeiros anos da vida, que em geral são os mais cruciais.

Por isso, não faz sentido se afastar durante a infância inteira e procurar a convivência na adolescência ou idade adulta e esperar ser recebido de braços abertos. Dica aos pais: dificilmente você será. Esse é um processo que precisa começar desde cedo.

“Após dois anos de casada com o Jean tive a Laísa e, menos de dois anos depois, o Joaquim. Meu marido é engenheiro e trabalha numa plataforma de petróleo, ficando 20 dias embarcado e 10 em casa. Como me acostumei com essa dinâmica e tenho dinheiro para pagar uma babá, isso não foi um problema nos primeiros anos. Mas as crianças estão crescendo e fico com muito medo delas não terem o pai como referência.

Já conversei bastante com o Jean e ele já pediu até para ser transferido para outra cidade, assim pode ter uma rotina mais normal. Ele e o pai não são próximos e ele não quer que isso aconteça com os filhos. No meio tempo, ele fala manda mensagem e liga todas as noites. Mas, como seu trabalho é por escala, não dá para contar com a sua presença e a gente sabe que isso faz diferença.

Patrícia, 34 anos, Relações Públicas.

Relatos de quem faz a sua parte para fazer parte.

“Acho maravilhoso esse questionamento [sobre se pai participativo não é uma redundância]. É a construção ideal. Mas, infelizmente, a gente vive num país e até num mundo, se você pegar dados de países subdesenvolvidos, em que o pai, o nome “pai” não significa, necessariamente, uma pessoa participativa. […] A gente tem que trabalhar a questão do pai participativo para que esse pai seja uma referência para outros e que, com o tempo, se torne norma. Aí, sim, quando se tornar a norma, o padrão, a gente pode tirar o adjetivo “participativo” e deixar só pai.

Marcos Piangers, jornalista, escritor de livros sobre a paternidade e digital influencer, em entrevista ao jornal O Povo, em 06 de agosto de 2018

“Senti falta da presença do meu pai na minha vida, o que me levou a aprender tudo na rua, inclusive coisas ruins. Faço de tudo para estar ao lado dos meus filhos para que tenham segurança e abertura de vir a mim em todos os momentos’.”

Depoimento publicado no portal Uai.com.br em agosto de 2017

“Todo pai leva filho na escola e para em fila dupla, tripla para não ter trabalho. Eu fazia questão de parar longe para, de mãos dadas, irmos andando e conversando. Na porta do colégio — ele estudou na Fundação Torino — tem uma escadaria, o caminho mais rápido, e a rampa, mais longo. Kevin sempre falava, ‘pai, pela rampa’. E ele nunca teve vergonha de se despedir de mim, até hoje abraça, beija e todos os seus colegas admiram isso”.

Depoimento publicado no portal Uai.com.br em agosto de 2017

Marie Curie é uma newsletter que traz conteúdo para mulheres. Toda semana, discutimos algum tema ou trazemos uma entrevista que tenha impacto na maneira como você trabalha, se posiciona e se relaciona com a sociedade.

A versão original dessa matéria foi publicada em 09 de agosto de 2018. Para se inscrever e receber um e-mail nosso todas as quintas-feiras, clique aqui.

--

--