Tem que representar

Marie Curie News
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8 min readNov 30, 2018

E por que a representatividade é importante

RE-PRE-SEN-TA-TI-VI-DA-DE
Substantivo feminino

s.f.: caráter do que é representativo, que é próprio para representar uma pessoa, um grupo, uma comunidade etc., ou os seus interesses.

Se tem uma lição que 2018 vai deixar para muita gente é sobre a importância da representatividade. Em janeiro, o Fórum Econômico Mundial — que reúne líderes de todo o planeta — foi presidido pela primeira vez apenas por mulheres. Depois de mais de quatro décadas de existência, o evento passou a ser criticado pela predominância de homens no comando. Com sete chefonas assumindo o controle, o resultado foi um maior número de mulheres subindo no palco, para falar de temas importantes, como inclusão, diversidade, discriminação e assédio . Numa toada menos formal, o festival de música, tecnologia e inovação South by Southwest (SXSW para os íntimos), que está rolando agora no Texas, também aderiu à inclusão e colocou uma quantidade incrível de profissionais, artistas e criativos do gênero feminino em suas apresentações. Basta uma olhadinha na grade do evento deste ano para ver que os organizadores realmente se engajaram.

Quem não entendeu que é assim que as coisas têm de funcionar daqui para a frente, sofreu o backlash. Dois dos mais importantes eventos de tecnologia dos Estados Unidos (a CES e a RSA Conference) receberam uma enxurrada de críticas de todos os cantos, de homens e mulheres, por conta de suas edições deste ano. O motivo? A pouca quantidade de profissionais do gênero feminino que foram convidadas para palestrar e a ausência completa delas nas principais apresentações das conferências.

Daí você pergunta:

O ser humano aprende muito mais com exemplos reais do que com palavras. Esse padrão de comportamento começa na primeira infância, quando vemos as ações de quem está ao nosso redor e começamos a adotá-las como corretas, ao estilo “é assim que este mundão funciona.” Diversos estudos (como este aqui) mostram isso. Quando crescemos, a sociedade começa a assumir boa parte desse papel de nos educar sobre o que podemos ser, as profissões que devemos perseguir ou mesmo qual objetivo de vida devemos ter. A influência vem de diversos lugares: por meio de filmes, livros e, principalmente, gente. Não é mimimi. Basta ver as fotos dessas meninas reagindo ao novo filme da Mulher Maravilha para sacar. Ou essas mulheres adultas contando como ficaram emocionadas durante as cenas de luta do longa da DC Comics. De novo: as cenas de luta.

Num mundo de homens-aranha e batmans, ver uma mina com escudo e uma espada em mãos sendo a melhor guerreira do rolê emociona, sim.

A vida de muitas mulheres, aliás, lembra um pouco a trajetória da Mulher Maravilha. Depois que sai de Themyscira, a terra de amazonas onde cresceu, ela se torna a única mulher a fundar a Liga da Justiça. De um jeito parecido, no mundo real, são poucas as profissionais que conseguiram e conseguem quebrar o teto de vidro que as impede de conquistar cargos mais altos e assumir desafios maiores. E, não se ver representada num conselho de empresa, num evento profissional, numa área de estudos ou em qualquer fucking lugar em que 50% da população deveria estar, é intimidador.

Lentamente, as coisas vêm mudando. Nos últimos anos, graças a um bocado de mulheres corajosas que decidiram ignorar o que viam para fazer o que queriam, a diversidade de gênero começa não só a aparecer, como a ser exigida — os casos dos eventos de tecnologia de que falamos antes só provam isso. Mesmo assim, o cenário ainda está assim:

2%
do investimento de capital de risco em 2017 foi realizado em startups fundadas por mulheres.

15%
da turma de Ciências da Computação da USP em 2016 era composta por mulheres. O curso estreou com meninas formando 70% da classe, em 1970.

16%
é a proporção de mulheres em cargos de CEO no Brasil.

23%
das obras produzidas na coleção de 2016 do Museu de Arte Moderna de São Paulo têm autoria feminina.

30%
dos cientistas do mundo são mulheres.

A função da representatividade é mostrar que nenhuma profissão ou papel é proibido. É por isso que, nos últimos tempos, a quantidade de iniciativas que buscam incluir gente com diferentes vivências e biotipos tem crescido, tanto dentro dos escritórios como nas telas de cinema. Porque esse movimento entendeu que, quando a gente se reconhece no outro, abrimos nossos horizontes. E nossas possibilidades também.

“Posso ajudar muito dizendo que é possível e ser precursora me faz feliz, mas não podemos ser medíocres ao aceitar a diversidade. A fala deve preceder a ação.”

Rachel Maia

CEO brasileira da Pandora, em entrevista à Exame. Ela lembrou que uma em cada 5 mulheres negras brasileiras trabalha como empregada doméstica.

* * *

“Visitar o Salão de Genebra me serviu como um lembrete de como as mulheres ainda são minoria em diversos aspectos da vida pública. […] Definitivamente, como visitante/ executiva eu integrava uma parcela muito pequena [do público geral]. Enquanto algumas pessoas podem ver como exagero o fato de nos expressarmos essas opiniões nas redes sociais ou mesmo em marchas, eu acredito fortemente que cada pensamento, palavra e ação que advogam pela unidade, irmandade e avanço dos direitos humanos nos ajuda a celebrar, promulgar e fortalecer nossas democracias e espalhar energia, mensagens e atitudes positivas de ativismo e igualdade.”

Pia Stanchina

co-fundadora do app Driven, em uma postagem em seu perfil no Instagram.

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“O peso de se certificar de não ter feito nada de errado e continuar a ser um exemplo. Preciso deixar a porta aberta, e isso pesa. Pesa, porque é uma carga. E por causa da expectativa. Pesa porque você não pode escorregar. Você nunca pode deixar a porta bater. Porque, se você deixar, ela vai se fechar com força. E você ficará do lado de fora, enquanto todo o mundo está lá dentro.”

Bozoma Saint John

Chief brand officer da Uber, durante a edição 2017 do espnW: Women + Sports Summit. Destaque para o fato de que Saint John não é só mulher, como também negra.

* * *

“O mais preocupante é quando a pessoa não detecta uma situação desigual acontecendo. Há ainda a discriminação e julgamento, com base em parâmetros totalmente irrelevantes, como a aparência. Ou aquelas piadinhas: ‘será que ela tem o que precisa?’, ‘será que você não é feminina demais para ser cientista?’. E ainda, ‘ela é bem sucedida na ciência, deve ser uma esquisita socialmente. Não deve ter vida social, não deve ter família’. A ciência precisa dos melhores cérebros, independente de raça, de gênero, sem nenhum viés.”

Fernanda Werneck

Pesquisadora do Inpa e vencedora do prêmio Rising Talent, da Fundação L’Oréal/Unesco.

Investir na representatividade, fomentando um ambiente mais diverso é uma atitude relevante no mercado de trabalho. De acordo com um estudofeito pelo Hay Group com 170 empresas brasileiras, “ter a diversidade como um tema relevante para a organização colabora para um ambiente em que as pessoas são mais incentivadas e têm mais abertura para coisas novas, conseguindo assim buscar soluções diferenciadas para problemas do dia a dia.”

Se esse argumento não for o suficiente, a gente aproveita para lembrar de uma pesquisa feita pela Catalyst, com companhias da Fortune 500 (a lista das maiores corporações do mundo). As empresas que possuem mulheres no conselho de diretores têm

  • 53% mais retorno sobre equity
  • 42% mais retorno sobre vendas
  • 66% mais retorno sobre capital investido

…do que aquelas que não têm nenhuma mulher.

A gente não podia deixar de citar aqui um dos argumentos mais usados por empresas / pessoas que acreditam que a falta de representatividade não é uma questão a ser discutida, que não passa de drama ou vitimização: “mas se hovesse mulheres tão boas quanto homens, claro que elas estariam aqui.” O problema é que há, mas os holofotes só estão chegando nelas agora. No Fórum Econômico Mundial, por exemplo, a escolha das sete mulheres para presidirem o evento não foi destaque no material de apresentação. Porque elas foram selecionadas pelo que realmente importa: representam setor privado, público, organizações internacionais, academia e trazem vozes diferentes para os mais de 400 painéis do evento.

Nas palavras de Sharan Burrow, secretária geral da ITUC (Confederação Sindical Internacional, na sigla em inglês) e uma das líderes do encontro, é isso daqui o que precisa acontecer:

“O mundo precisa negociar um novo contrato social, reescrever as regras. Nós construímos um mundo fraturado. Agora, precisamos aprender as lições e reconstruí-lo.

Marie Curie é uma newsletter que traz conteúdo para mulheres. Toda semana, discutimos algum tema ou trazemos uma entrevista que tenha impacto na maneira como você trabalha, se posiciona e se relaciona com a sociedade.

A versão original dessa matéria foi publicada em 15 de março de 2018. Para se inscrever e receber um e-mail nosso todas as quintas-feiras, clique aqui

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