Tudo o que mãe diz é sagrado

Marie Curie News
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5 min readMay 23, 2019

Como a literatura ajudou Paula Corrêa a lidar com o luto

E se, em um ato desesperado, você pudesse dar um pedaço seu para evitar a morte de alguém que você ama? A jornalista e escritora Paula Corrêa tinha esperança de, ao doar uma parte de seu fígado, salvar sua mãe. No livro Tudo o que mãe diz é sagrado(Editora LeYa), ela conta parte dessa esperança — chegou até mesmo a sair para comemorar e “usar seu fígado” dias antes da operação.

Paula também relata a dor de ver morrer alguém que tanto amava e tinha, literalmente, um pedaço dela. Há quem simplesmente diga que filhas e filhos enterram mães e pais — é a ordem natural da vida. Só que, na prática, toda morte de quem amamos é um pouco mais complicada do que isso.

A visão de uma filha que ficou dentro de uma sala de operação para ter sua mãe ao seu lado mais alguns instantes é tocante e desperta a empatia de qualquer tipo de leitor. Afinal, temos consciência de que nem todas as pessoas lendo esse texto irão experimentar a maternidade, mas é fato que somos todas filhas e filhos. O sentimento de Paula é resumido nas primeiras páginas da publicação:

Em curtos relatos, de forma visceral, a autora deixa transparecer a sensação de não ter sido suficiente. Em entrevista, Corrêa conta que nunca pensou em transformar a perda em um livro. Ela iniciou o blog Calotas, ainda em 2007, como uma forma de registrar sua experiência. E, em dado momento, percebeu que os textos todos tinham o percurso do luto. “Percebi que aquele processo do luto tinha se encerrado e que eu tinha o livro”, comenta.

As páginas carregadas de sofrimento podem servir como lição para todos que já perderam um ente querido. Corajosamente, algumas passagens revelam verdadeiras feridas abertas, como ter que lidar com a falta de energia suficiente para velar a mãe de forma apropriada — reflexo de ter se submetido a uma cirurgia de mais de 10 horas.

“Entrei me tremendo toda. Começaram a me abordar com compaixão. Bom, eu estava toda torta, com um dreno cheio de sangue saindo das minhas vísceras, com metade do meu corpo cortada e um fígado dilacerado, e a primeira coisa que eu disse, eu não sei se eu disse em voz alta ou baixa ou somente na minha cabeça, ‘eu quero ver minha mãe’. A morte, irredutível, sem consolo. Não levei um susto ao vê-la. A primeira coisa que fiz foi passar a mão no seu cabelo, como fazia tantas vezes para acalmá-la, para tentar aplacar sua dor, e ela me abraçava e me agradecia e ficava lá quietinha.”

A história de como a poetisa lidou com a morte de sua mãe serve para valorizarmos as marcas que a maternidade deixam em nossas vidas, mas também como lembrete de que é preciso trabalhar nossas perdas.

Em dado momento, a morte foi transformada em um tabu, em algo inadmissível quando o assunto é trazido para a esfera pessoal.

Uma presença constante na vida de Paula é a do cachorro Astor. A autora gosta de dizer que foi salva pelo companheiro canino, que sempre pedia comida e afeto, além de a forçar a passear pelo bairro e ver “o mundo lá fora” nas fases mais difíceis do luto. Ao lado dos amigos, de parentes próximos, dos passeios pelo bairro, das conversas com vizinhos e também das lembranças da mãe, a escritora mostra que a vida passa e deixa uma lição: quem se vai também pode levar muito.

A narrativa, que não segue uma lógica específica, funciona como uma pequena concha de retalhos, que aos poucos vai tornando a relação entre mãe e filha mais clara — e, consequentemente, se torna mais fácil de entender e sentir. Não existe uma grande conclusão, mas há a impressão de que a morte pode nos fazer repensar nossas definições a respeito da própria vida.

Durante as 168 páginas, nos deparamos com perda, poesia e a constatação de quanto nossas vidas são influenciadas, sem que percebamos, pelas presenças e ausências de nossas mães. E esse é só mais um motivo para que a leitura seja tão recomendada.

É um convite para que todos observem as belezas que existem no mundo. E saibam que elas podem nos distrair da falta daqueles que se foram.

PS: só mais uma palavrinha.

Esta é a terceira parte do nosso especial dedicado às mães. Antes, abordamos mães no mundo corporativo e retratos do cinema para a maternidade. A edição de hoje se coloca na perspectiva de uma filha que sente falta da mãe e foi, talvez, uma das mais arriscadas e diferentes até aqui.

Por isso, é tão importante saber o que vocês acharam deste material. Na próxima semana, traremos uma reportagem que toca no outro ponto dessa relação. Como sempre, contamos com a colaboração de vocês com comentários, críticas e sugestões. Ah, se você conhece alguém que também pode curtir nossos conteúdos, encaminhe os e-mails e compartilhe o link do Medium.

Até semana que vem, Maries.

Marie Curie é uma newsletter que traz conteúdo para mulheres. Toda semana, discutimos algum tema ou trazemos uma entrevista que tenha impacto na maneira como você trabalha, se posiciona e se relaciona com a sociedade.

A versão original dessa matéria foi publicada em 23 de maio de 2019. Para se inscrever e receber um e-mail nosso todas as quintas-feiras, clique aqui.

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